A jovem enfermeira Diana Salgueiro, natural deste freguesia, enfermeira especialista em enfermagem médico-cirúrgica do Centro Hospitalar do Porto, publicou na revista da Câmara Municipal de Viana do Castelo, um artigo relacionado com a Covid-19, o qual passamos a transcrever:
Quando me pediram para dar o meu testemunho, enquanto profissional de saúde que está na linha da frente contra a Covid-19, pensei logo se devia partilhar o meu testemunho enquanto enfermeira destemida pronta para enfrentar este inimigo invisível, ou jovem enfermeira, que para além da profissão também tem o papel de filha, tem família, tem amigos e sonhos que ficaram estagnados no tempo.
É relativamente fácil dizer que somos fortes, que vai correr tudo bem… E não confundam a minha mágoa em relação a esta situação, que estamos todos a vivenciar, com descrédito no nosso Sistema Nacional de Saúde ou no nosso país; sou da opinião que temos um Sistema de Saúde que nos privilegia em relação a outros países, que tem as suas fragilidades, mas compensa com serviços de excelência e por dar cuidados de saúde a todos, sem distinção. Por isso, eu acredito que vamos conseguir superar esta batalha, acredito que este será um momento de crescimento e superação, que um dia vamos poder contar às futuras gerações! Mas no imediato, é de muito difícil gestão emocional.
O mais penoso é saber que não posso estar com aqueles que me são queridos. Esta profissão que eu escolhi exercer. E que apesar de todas as dificuldades seria incapaz de abandonar, impossibilita-me de estar junto deles. Ninguém me proíbe formalmente de o fazer, mas a segurança deles para mim é muito importante e não os posso colocar sob os mesmos riscos que eu… Os riscos de uma profissional de saúde que tem todos os cuidados com a segurança, pois sabe que a sua segurança é a segurança de toda a equipa. Mas que sabe que todos somos falíveis em algum momento, que ouve diariamente relatos de profissionais de saúde que ficaram infetados e que tem receio…
Até há pouco tempo eu era enfermeira, especializada em enfermagem médico-cirúrgica. Mais uma, como tantas outras, num serviço de internamento dedicado a doentes do foro cirúrgico, que prestava também cuidados a doentes do foro oncológico e paliativo; posso dizer que tinha a sorte de poder exercer a minha profissão num serviço que reúne a possibilidade de prestar cuidados aos mais diversos níveis, sentindo-me realizada!
Neste momento sou enfermeira num serviço de internamento covid. O que mudou? Tudo e nada… Eu e os meus colegas, que fomos chamados para a frente da batalha, não deixamos de ser enfermeiros, de prestar cuidados de qualidade e com a excelência que sempre nos caracterizou. No entanto, tivemos de nos adaptar a uma nova realidade. Temos doentes muito dependentes dos nossos cuidados, principalmente idosos que nem sequer percebem muito bem o que se está a passar por estes dias…
A comunicação é parte integrante da enfermagem no processo de cuidar do outro, sendo que nesta altura se tornou ainda mais relevante, contudo se outrora existiam barreiras a esta comunicação agora estas intensificaram-se! As máscaras não nos permitem que os doentes com défices auditivos leiam os nossos lábios, para além de que todo o equipamento de proteção dificulta a nossa audição. Por sua vez, o uso de luvas permanente faz com que até o toque seja diferente, esta que era uma tão simples forma de comunicação não-verbal.
Também o tempo é escasso… Para nossa segurança não podermos estar junto dos doentes o tempo que gostaríamos. Apesar de devidamente equipados, sabemos que não devemos permanecer muito tempo nas enfermarias, apenas o tempo essencial e indispensável para a proteção de cuidados e, por isso, os doentes não têm alguém permanentemente com eles, até devido à restrição de visitas, e sofremos todos com isso. Alguns doentes pensam que foram abandonados, dizem que querem morrer… E até morrer se tornou mais difícil…
A morte que para muitas pessoas ainda é um tema tabu, já antes desta pandemia começar, fazia-me querer uma especialização em cuidados paliativos; agora ainda mais ambiciono por esta especialização! Precisamos urgentemente de pensar estratégias para minimizar a dor de quem parte nestas condições de isolamento e de quem vê partir os seus entes queridos, sem que se possam despedir e ter um processo de luto digno.
Para além disso, e mesmo que quiséssemos, não conseguimos permanecer muito tempo nas enfermarias, porque os equipamentos de proteção individuais são muito quentes. Iniciamos a proteção de cuidados e passado pouco tempo começamos a transpirar imenso e as viseiras, por vezes, ficam embaciadas, o que dificulta a visão.
A tudo isto acrescento que os turnos de trabalho são longos, saio do trabalho extremamente cansada, nem sei precisar se mais cansada física ou psicologicamente. Mas, o trabalho em equipa, a resiliência de todos nós, faz-nos seguir em frente, arranjar estratégias para mantermos a nossa saúde física e mental em prol de continuarmos a cuidar dos nossos doentes. A solidariedade de diversas entidades também tem sido excecional para connosco.
Desde material de proteção individual a bens alimentares, não nos tem faltado nada. Estes pequenos mimos aquecem-nos a alma, percebemos que estamos no caminho certo, mesmo que às vezes temamos dúvidas ou estejamos inseguros, mostram-nos que estamos lá, e que estão connosco, que fazemos o melhor que podemos com aquilo que temos e que estamos lá, não só agora, mas sempre!
Quem diria até que um dia iriam cantar o hino nacional em frente ao meu Hospital e eu iria estar na varanda, juntamente com os meus colegas, sem conseguir conter as lágrimas?
Mas atenção, não porque me sinta uma heroína, apesar de assim nos apelidarem. Sinto-me alguém com responsabilidades acrescidas por ter um conjunto de conhecimentos e habilidades numa área das ciências da saúde, que é a enfermagem.
Por isso lamento, mas neste momento não está tudo bem… Tenho saudades… Tenho saudades de um mundo com afetos, de um mundo em que possamos estar novamente juntos e em que eu possa regressar a Viana e percorrer aquela que para mim será sempre a cidade mais bonita do mundo.
No entanto, tenho a esperança de quem em breve poderei caminhar pelas ruas da nossa linda cidade, olhando para cada recanto com ainda maior contemplação. Mas, para isso, temos todos de ser conscientes dos nossos atos, evitar a propagação do vírus e com isso dar mais um passo rumo à vitória. Espero que esta pandemia seja um momento de aprendizagem para todos, que mais tarde possamos fazer uma reflexão e perceber o que realmente importa, o que realmente tem valor e o que realmente nos faz feliz.
Muito fica por dizer, os sentimentos são tantos que não existem palavras que os possam descrever na sua totalidade… Para além disso tenho de ir trabalhar, o turno da noite espera por mim. Até breve Viana.
Esta nossa enfermeira, tal como tantas outras e também os médicos, ajuda-nos a perceber o quanto é difícil e fundamental, estarmos bem protegidos, para conseguirmos que esta feroz pandemia não nos afete. É nestas alturas que, talvez pensamos mais nos profissionais de saúde, pois eles são fundamentais para o nosso bem-estar.