A dois de Maio de 1808, levantava-se o povo de Madrid contra a ocupação napoleónica. No dia seguinte, os tiranos ocupantes haviam massacrado a população, destruído e pilhado o que restava da cidade. Às portas de Madrid, cometeram um genocídio, fuzilando durante horas os patriotas aprisionados, tanto os notórios revoltosos como os que, por mero capricho, consideravam “suspeitos” de o serem.
Seis anos depois, em 1814, já caído Napoleão e terminada a Guerra da Independência de Espanha, o Conselho da Regência solicitou os serviços de Francisco de Goya para perpetuar através da sua Arte, “as acções ou episódios mais nobres e heroicos da nossa gloriosa insurreição contra o tirano da Europa”.
Este foi um dos dois temas escolhidos pelo genial Pintor, “O 3 de Maio de 1808”.
Tudo quanto um século depois se viria a designar como revolucionário na arte já nele palpita com uma intensidade tal que faz (e fará) o espanto de quem o observa.
Tratando de um tema histórico, chega-se a ele pelo lado do drama (reservado às personagens comuns, reais e “falíveis”) e não pelo lado clássico da tragédia (que se dedica aos heróis e personagens “superiores”). É que as personagens representadas na tela, para além de serem anónimas – de um lado ou do outro do ritual (de morte), uniformizados ou não -, constituem um todo, “o Povo”.
Cena nocturna, ela é iluminada artificialmente por uma grande lanterna (“o Fogo”) que, pousada aos pés do pelotão de fuzilamento, se derrama sobre um macabro ritual sacrificial humano.
É anunciadora do simbolismo modernista: – O mesmo povo anónimo, vivendo e lutando pelos mais altos ideais da Liberdade e da Dignidade Humanas, é dividido em facções e posto em posições antagónicas, mostra marcas distintivas conforme são “civis” ou “militares”. No grupo dos sacrificados neste ritual, destaca-se um homem pela brancura (“pureza”) da sua blusa, o ponto mais luminoso de toda a tela, e, sobretudo, pela atitude do corpo que lembra a posição de Jesus Cristo Crucificado. Este herói olha corajosamente nos olhos a própria Morte. O tom baço, apagado e cinzento que o Pintor colocou em último plano no colossal edifício da igreja é o mesmo com que veste o frade que está em primeiro plano, impotente e submisso: sinal da impotência e incapacidade da religião institucionalizada para pôr cobro à catástrofe inominável, ao festim carniceiro e brutal …
As pinceladas enérgicas e brutais, muito pessoais, transmitem a expressão das avassaladoras emoções íntimas das personagens e do próprio autor. É já o Expressionismo pujante, maduro, palpitante!… Na metade direita da tela, “o lado da sombra”, o bloco do “povo fardado” é uma massa compacta de mecanismos sem rosto e sem emoção que vai “funcionando”, de costas para nós, a Humanidade, como se fosse uma colossal Ceifeira (“a Morte”) …
Os tiranos sempre se wvjulgaram heróis das grandes Tragédias. E como se fossem uma espécie de seres eleitos ou semideuses, bebem o seu conhaque nos nossos crânios polidos enquanto jogam, “sossegados”, intermináveis partidas de xadrez…
Sendo eles os causadores destas dramáticas obras de Génio e de Humanidade, evidentemente que não estão presentes nelas. E a sua ausência – tal como o seu secretismo – tornam-se ruidosos.
N.R. – O Autor não segue o preceituado no novo Acordo Ortográfico.