Natal às escuras

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Aproxima-se o Natal e talvez o fim do Mundo. Tudo tão longe e tão perto do princípio, tudo fundido e confundido de ilusão e desilusão, de esperança e desalento, de medo e coragem. A história da Humanidade numa Era sem história, escrita fora das páginas, em que o Universo ainda permanece infinito e o dito progresso promete transcender os limites do Homem. A grandeza da Razão abrindo novos horizontes, iluminando os desafios éticos que se impõem, não se compadece com o rumo amoral e irracional deste mundo. Em nome da paz, sofrem e morrem todos os que não fazem a guerra, e nas mãos da guerra cresce a riqueza de todos os que não querem a paz. Metade da população da terra morre de fome e outra metade morre de fartura, resultado de viciosas matemáticas orçamentais, de falsos movimentos de cooperação, enganadoras promessas de paraíso e hipócritas palavras de solidariedade e fraternidade. A Humanidade está doente, o Homem está doente, por mais curas que se inventem para as doenças que propositadamente e constantemente se criam. Doente está ainda a Natureza, violada pelo egoísmo, esventrada pela irracionalidade e pela incultura, ainda que aparente florir em todas as Primaveras. Vencer a escuridão e o medo com a luz da esperança é a única maneira de abrir caminho à salvação do que ainda resta ao Homem como semente da Cultura e da Justiça para a Humanidade. Tudo está dito, quase tudo está feito, falta apenas salvar o Homem.          

Aproxima-se o Natal. Dou comigo a abrir as caixas de papelão fechadas com a ternura de um lacinho. Lá dentro, os enfeites que todos os anos saem cá para fora nesta época. Entre eles o meu presépio, não o de terracota, o da minha infância. Esse ficará para sempre na aldeia, onde eu e ele nascemos, na paz e no silêncio do vão da janela, atapetado de musgo arrancado ao muro da fonte. O que tenho em casa é grande, de porcelana branca, com requintes de arte. Ao olhar para as suas imagens tão serenas, tão plácidas, uma doce lembrança faz tanger dentro de mim uma corda de criança que se desfaz em lágrimas. Lágrimas de tristeza, de saudade, de angústia ou de raiva, não sei. Qual o significado do que estou a fazer? Eu, que sempre procurei a autenticidade dos meus actos e que sempre amei a verdade e a sua beleza, senti-me despojada de razão. Não vou fazer nada, volto a meter tudo nas caixas, decidi. Mas as crianças… 

Na placidez das figurinhas em seu lugar costumeiro, lembrei-me da tal Paz na terra aos homens de boa vontade. Pensei, então, nos milhares de crianças trucidadas pela guerra…e apetecia-me deixar tudo às escuras neste Natal.

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