Decorre, até ao final deste mês, no r/c dos Antigos Paços do Concelho de Viana do Castelo, à Praça da República, a exposição “Proibido por Inconveniente”, com materiais da censura, do Arquivo Ephemera.
A mesma contém material inédito que foi apresentado, apenas, no programa Abril em Lisboa 2022. A vinda para Viana do Castelo deve-se ao dinâmico núcleo local do Ephmera e ao fundador deste vasto arquivo documental, José Pacheco Pereira, comissário da exposição.
Este marcou presença na inauguração, que ocorreu ao final da tarde do último dia 05, que previu também a entrega à Ephemera de parte do espólio de António Feio Ribeiro da Silva e da mulher.
A iniciativa conta com a visita de alunos das escolas do concelho, do 2.º e 3.º ciclo, bem como do secundário. Estas vão dacontecer nas manhãs de segunda e sexta-feira, bem como nas tardes de quarta-feira. Para o público em geral também haverá visitas guiadas pelas 11 horas do dia 22, podendo as marcações ser feiras no local ou pelo endereço eletrónico <[email protected]>.
O A AURORA DO LIMA esteve à conversa com Pacheco Pereira.
Quais os objetivos desta exposição?
É mostrar um dos aspetos mais eficazes da repressão do Estado Novo. A gente, com facilidade, compreende a violência sobre as manifestações, as prisões, a proibição dos partidos políticos e da atividade política. Foram 48 anos de censura. Mais do que em Espanha, ou na Alemanha nazi. Mais do que na Itália de Mussolini, mais do que nos países do socialismo real do Leste. Com exceção da URSS, nenhum país da Europa conheceu tão longo período da censura. Sem esmorecer um único dia. Isso é um condicionamento psicológico, intelectual… Há censuras de livros de Kant com o argumento de que era contra a Igreja Católica. Há coisas que parecem completamente absurdas. Em livros de filosofia, nalguns caos, o autor escrevia uma coisa que era censurada e, a partir daí, a obra dele era toda proibida, nem que fosse a coisa mais pacífica do mundo. Era um combate para moldar a cabeça das pessoas, impedindo que pensassem, que conhecessem que o mundo é conflitual em Portugal e pudessem ter dúvidas sobre o poder político de Oliveira Salazar. Isto fizeram-no com bastante eficácia durante 48 anos.
Como foi possível juntar todo este espólio?
Foi recolhido em vários sítios. Parte foi comprado, parte foi oferecido em doações. Temos aqui uma combinação de material de várias origens. Todo ele propriedade do Arquivo Ephemera.
Além de material alusivo a jornais e revistas, há também de música e discos!
Alguns discos censurados estão à entrada da exposição. As músicas censuradas eram as que eram publicadas cá em Portugal. As pessoas desconhecem, mas ranchos folclóricos foram censurados… e até o António Calvário. Muitos autores foram censurados, já para não falar das músicas com mais conteúdo político e social, temos casos de obras editadas em França e, depois, trazidas para cá. A censura sobre os discos tinha também vários níveis. Por exemplo, havia a proibição de passar na rádio, mas o disco podia ser comprado, ou pura e simplesmente era tão proibido como os jornais ou os livros.
Porquê essa diferença da música e livros puderem passar na rádio?
Dependia do censor e do conteúdo. Por exemplo, houve uma altura em que os The Beatles não podiam passar na rádio. Quando o John Lennon disse uma frase que era entendida contra a Igreja Católica, as rádios não os passaram durante algum tempo.
No caso do António Calvário, para nós totalmente pacifico, foi uma canção “Ao Amigo que desapareceu”. Ele ia-o visitar e desapareceu. É um hino contra a guerra colonial. Tudo que, de perto ou de longe, remetia para a guerra colonial, para a situação das colónias, era liminarmente proibido.
Portanto, há graus de proibição. Que também variam com o tempo. Há ali um período, logo a seguir a 1968, na ascensão de Marcelo Caetano ao poder, com uma aparente liberalização em que se publicaram muitos textos marxistas, textos de extrema esquerda, anarquistas, mas isso durou um pequeno período de tempo. Muitas vezes, o que acontecia é que havia a abertura nas campanhas eleitorais, em determinados momentos, mas depois voltava tudo ao mesmo.
A censura também variava muito conforme a qualidade dos censores. Na PIDE, há casos como o da apreensão de uma biblioteca em casa particular e leva Dostoiévski, que é russo. Esse tipo de coisas aconteciam e variavam muito. Não existe uma uniformidade e há despachos da censura com as instruções sobre como devem atuar os censores. Mas, depois, havia uma grande diferença. Havia “cunhas”, havia autores, como o Ferreira de Castro que era muito conhecido, e a censura evitava censurá-los.
Antes de irem à PIDE ou ao ministro, passavam sempre numa comissão de censura?
No caso dos periódicos, sim. No caso dos livros, sim, mas, à posteriori, depois de publicados. As tipografias, que também podiam ser sujeitas a penas, mandavam os livros à comissão de censura. Nalguns casos, é a própria PIDE, a própria Legião ou os Ministérios que têm conhecimento do livro e chamam a atenção do censor.
Na música, é o Secretariado Nacional de Informação, que trabalhava no Palácio Foz, que faz a censura dos espetáculos – o teatro era censurado, os filmes por maioria de razão. Por exemplo, temos aqui um despacho relativo à corporação dos distribuidores. Iam trazer um filme do estrangeiro para Portugal e isso custava dinheiro. Eles pensavam rentabilizá-lo. Quando a censura lhes cortava o filme ou era proibido, eles perdiam dinheiro. Há muita pressão da indústria da distribuição junto do SNI e da PIDE para reverter proibições de filmes.
Insisto, a situação não é inteiramente uniforme, muda com o tempo, depende dos censores, depende de quem quer o livro censurado ou quem quer o livro publicado, mas, no essencial, a regra é a proibição.
Mas também parece que havia censores muito ingénuos.
Não eram bem ingénuos… eram ignorantes. Mas, por exemplo, um texto podia passar por estar assinado por Ulianov (pseudónimo de Lenine), mas não passava nada se tivesse alguma coisa que parecesse desrespeitoso das autoridades.
Uma avaliação feita sempre pelos censores.
Que davam despacho. Este ia a uma hierarquia e, muitas vezes, esse despacho, como se pode ver em algum material aqui exposto, era contrariado no sentido de minimizar ou agravar (depende das circunstâncias).
Referiu também que havia censura aos suicídios…
Crimes violentos, acidentes graves, suicídios e tudo que aquilo que pode implicar com questões de moralidade (dou o exemplo de, em Évora, uma rapariga ter fugido de casa, algo trivial). A tudo isso, a censura olhava com desconfiança. E proibiam.
Hoje em dia, com os suicídios, também há uma certa reserva!
Há prudência. Havia uma razão, de fundo, com tudo o que podia denotar um conflito, e a censura cortava.
A censura não quer que o país tenha qualquer forma de conflito. Não apenas político, mas social e cultural. O que acontece com o suicídio é que, para além de ser uma coisa errada do ponto de vista da Igreja Católica – e isso também era relevante –, era uma disfunção consigo próprio. E a censura cortava.
Para os jornais, havia a censura, mas tarde comissão do exame prévio. Nos livros isso não existia?
Os livros podiam ser publicados. As tipografias tinham obrigação de os mandar à censura. Esta olhava para os livros depois de serem publicados.
Tenho o meu caso pessoal. Publiquei dois livros que foram censurados, mas quando a censura e a PIDE foram fazer buscas à tipografia, já estavam esgotados. Acontecia também que havia uma verdadeiro comércio por baixo da mesa. Por “trás do balcão”.
De qualquer maneira, para os jornais, a censura era mais honesta. Pelo menos, o leitor sabia que o jornal era censurado, mas o livro não sabia?
Pura e simplesmente, nalguns casos não podia ver o livro. Noutros casos, podia ver durante 15 dias e, ao fim desse tempo, deixava de poder ver.
E a censura nos meios radiofónicos e televisivos?
Estão na entrada da exposição. Damos vários exemplos, como a censura da publicidade. A censura desta na rádio ia aos censores. Aliás, há várias penas de multa a emissoras de rádio porque tinham passado um reclame sem que fosse visto na censura. Esta estendia-se à publicidade e aos reclames.
Também nos noticiários?
Sim. Havia várias maneiras de censurar. De um modo geral, os jornalistas já tinham os despachos das agências. E, depois, as pessoas censuravam-se.
Há uma resistência pacífica, sistemática nos jornais, nos livros, na música, a tentar enganar a censura. Em muitos casos, enganavam, mas, de um modo geral, a questão fundamental era que a proibição, implicava sanções.
Hoje em dia há muita polarização da informação. Dos órgãos de comunicação tradicionais, do meio online, das redes sociais.Isso também não pode acrescentar desinformação?
Não só acrescenta desinformação, como acrescenta vontade de censura. Nos dias de hoje, existe censura de linguagem, censura dos temas (na extrema direita e na extrema esquerda). Essa censura, no entanto, não tem o caráter institucional que aquela tinha. Mas também há. Nalguns casos mais insidiosa, porque se faz através do ataque, por exemplo, à personalidade e ao caráter.
Eu compreendo que há determinado vocabulário que é racista, homofóbico e o uso dele pode suscitar uma reação social. Mas uma coisa é proibi-lo e outra é defrontar o impacto social.
Ainda recentemente um membro da Iniciativa Liberal chamou ‘monhé’ ao primeiro-ministro. Que o é, em certo sentido, embora na terminologia original, seja pejorativo. É usado em Moçambique, nesses termos.
A mesma coisa se passa com muito outro vocabulário, principalmente quanto às questões sexuais.
Sou completamente contra que haja censura da palavra. Desde que não se viole a lei. Esta viola-se quando há calúnia, quando há desinformação deliberada com o objetivo de obter resultados económicos ou gananciosos e de ataques às pessoas. Quando, por exemplo, se é racista, de acordo. Se é um crime puna-se.
Mas uma censura que, infelizmente, hoje é cada vez mais comum, e, em muitos casos, absurda. Ainda recentemente houve cenas de tiroteio num bairro de Lisboa. Leio a notícia de completa consciência de que não me dizem o que aconteceu. Não querem dizer que foi entre famílias ciganas. É uma autocensura. Porque não há nenhuma razão para tirar um elemento importante porque as famílias portuguesas não andam, por aí, armadas pelas ruas. Isso não significa que todos os ciganos são assim. Claro que não. Mas é um elemento importante da informação. Este tipo de autocensura que existe hoje, com o vocabulário, é pernicioso.