“Quando produzimos, não pensamos em participar em festivais”

Com apenas 31 anos de idade, o vianense Flávio Cruz é um nome em destaque no panorama audiovisual. Recentemente, foi premiado com o “Melhor Vídeo Musical” na meca do cinema, Hollywood, num festival que pretende destacar o trabalho criativo efetuado por cineastas de todo o mundo. Foi com o vídeo da canção “Havemos de ir a Viana”, lançado em 2020, na edição virtual da Romaria d’Agonia. Com ele, o jovem cineasta participou em 11 festivais  de nove países e arrecadou 10 prémios.

A AURORA DO LIMA esteve à conversa com Flávio Cruz, a quem o Município acaba de atribuir o galardão de Cidadão de Mérito.

Conte-nos como tudo começou?

Sempre estive ligado à comunidade artística porque, desde muito novo, integrei o Etnográfico da Areosa e a Fundação Maestro José Pedro (agora Zé Pedro Associação Musical). Deram-me  uma visão mais ampla daquilo que era Viana do Castelo e do que era a produção artística.  Fiz a minha formação académica na Escola Secundária de Monserrate, Curso de Ciências, que tinha pouco  ver a com as Artes. Depois, também por influência de alguns professores que se foram cruzando ao longo do meu caminho, entendi que estava num território muito propício à criação artística. Despertou-se-me um bichinho de começar a criar. Tive muita vontade de produzir conteúdos para teatro, nomeadamente sonoplastia, mas, depois, a vida foi-se encaminhando e levou-me até às Artes Visuais, nomeadamente à fotografia e ao cinema.

No ensino secundário, através de um professor que tive, comecei a desenvolver alguns projetos de vídeo. Também cheguei a produzir em algumas iniciativas da Ao Norte (Histórias da Praça). Posso considerar que esse foi o primeiro contacto que tive com a produção audiovisual. Quando fui para o Porto, para a Escola Superior de Música e Artes e Espetáculo (ESMAE), comecei a estudar e a perceber aquilo que eram as artes visuais. São a fotografia e o vídeo. Comecei a produzir alguns conteúdos associados sempre ao curso e tive uma oportunidade muito grande – no meu último ano de licenciatura – em que desenvolvi dois projetos. 

Que projetos foram esses?

O primeiro foi bolseiro de uma iniciativa da RTP, que se chamava Academia RTP, com um projeto que foi emitido na RTP, o Tintim Por Tintim, em que dávamos a conhecer cinco produtos portugueses e como eles eram feitos. Fui realizador desse projeto. Ao mesmo tempo, o meu projeto final de licenciatura foi desenvolvido aqui em Viana do Castelo, com o CDV – Teatro do Noroeste. Foi o meu primeiro filme, que se chama Simbiose, em que há um documentário onde acompanhamos a produção de uma peça de teatro, Cenas da Vida dos Maias. Tentamos perceber, um bocadinho, a relação que havia entre o ator enquanto personagem e o ator enquanto pessoa. Esse foi a minha primeira obra visual. Depois, fiz um pequeno filme. Continuo a desenvolver projetos pelo resto do país, mas com maior visibilidade e, em grande parte, desenvolvidos em Viana do Castelo. Tenho uma paixão por este território e acho que tem um potencial tão grande, tanto material, como imaterial, que achei interessante desenvolver o meu trabalho aqui.

Dá para viver disto?

É difícil. Tenho uma pequena produtora, e vou alocando pessoas às minhas equipas, mediante os projetos que vou desenvolvendo, assim permite-me escolher melhor pessoas para cada um dos projetos, mas é complicado viver das artes. Felizmente, aqui em Viana do Castelo, tenho tido boa aceitação e tem-me sido dadas bastantes oportunidades para desenvolver conteúdos sobre esta cidade e sobre as pessoas que aqui moram.

Surgiu durante o confinamento no âmbito da pandemia. Como foi feito?

Aconteceu no ano em que pela primeira vez não aconteceu a Romaria da Senhora d’Agonia (2020) e estivemos durante algum tempo a perceber de que forma a Senhora d’Agonia poderia acontecer sem acontecer fisicamente. Este Havemos de ir a Viana foi a solução que encontramos, por vários motivos. Foi uma conjugação de várias peças, nomeadamente a pandemia – foi o principal fator. Seria desenvolvido outro projeto, de certeza, com tantos ou maior sucesso, é impossível também agora perceber. Depois os artistas estavam todos em casa, sem trabalho, precisavam também de uma montra para se exporem. Percebemos que havia uma música chamada Havemos de ir a Viana, que falava no futuro, deixava uma réstea de esperança para o futuro, de voltar a esta cidade, era isso que nós entendíamos e começamos a desenvolver esse projeto através de uma proposta da VianaFestas e da Comissão de Festas da Senhora d’Agonia, convidamos os 48 artistas (que são mais de 48 pessoas, são artistas/entidade). 

Foi um processo fácil?

Olhando para trás, pensamos que foi fácil, mas não foi. Não podíamos sair de casa, a não ser para trabalhos muito específicos. Tínhamos de estar sempre com máscara. Tivemos de o fazer de uma forma muito faseada, mas, ao mesmo tempo, de uma forma muito intensa. A pandemia surgiu em março, o projeto começou a desenvolver-se em maio e depois tivemos dois a três meses até agosto até chegarmos a este produto final. Tivemos uma grande vantagem porque tanto eu como o produtor musical, o Paulo Baixinho, de Caminha, conhecíamos bem o meio artístico de Viana do Castelo. Apesar de ter sido em pandemia, não foi nada feito à distância. Todos os músicos foram a estúdio gravar a parte que lhes dizia respeito, um a um, por causa dessas restrições.

O processo funciona assim, íamos gravar a estúdio e, se possível, logo a seguir, íamos logo para um local já definido em Viana do Castelo para gravar a parte em vídeo daquele tema gravado em estúdio. Fez-se de uma forma muito rápida. O tempo era muito curto e havia muitas restrições. Todos os artistas foram a estúdio, gastaram o seu tempo para participar neste projeto, mas agora, olhando para trás, todos reconhecemos que valeu a pena este esforço que tivemos para produzir esse conteúdo.

Era expectável obter assim tantos galardões?

Quando produzimos, nunca pensamos em participar em festivais de cinema. O grande objetivo deste filme foi, no ano em que não aconteceu a Romaria d’Agonia, marcar presença de uma forma forte aqui em Viana e, sobretudo, no país.

Acreditávamos que isso ia acontecer, e temos ali um conteúdo forte para oferecer à sociedade. Começaram a surgir alguns convites para participarmos em alguns festivais, meramente informais, porque, apesar de haver um presidente do festival, todos estes festivais tem um júri composto por diversas pessoas, de diversos países, sensibilidades, e  áreas. Não são só realizadores de cinema que participam no júri destes festivais. Por norma, estes festivais têm júris com mais do que 10, 15 ou 20 pessoas. Há pessoas de áreas totalmente distintas. Desde a área do Turismo, da Antropologia, da Sociologia, a profissionais da área como cinema e música. Não ganhamos em todos os festivais em que participamos, mas na grande maioria.

Achamos curioso, começamos a perceber que havia conteúdos que também se poderiam abordar. Por norma, os filmes de turismo raramente recorrem a um videoclipe para promover um território. Nunca nos lembramos muito dos festivais de cinema porque achamos que não se enquadraria na temática dos festivais de filmes de turismo.Os filmes premiados, excetuando este em Hollyood, foram, quase todos, em festivais de filmes de turismo.

Quais as reações, especialmente após o prémio em Hollywood?

Tem sido uma caminhada engraçada. O primeiro festival em que participamos foi no Japão. É muito interessante perceber como é que um filme de Viana do Castelo chega até ao Japão com uma realidade completamente distinta e consegue ser reconhecido.Todos os países onde estivemos é sempre uma surpresa e são sempre reações diferentes. Tive o prazer de representar a equipa que produziu o filme – estive no Brasil, na Turquia…. 

No Brasil, o filme foi exibido em Cachoeira, na  Bahia, a cidade onde o Caramuru chegou e atracou. Foi muito interessante perceber como um país irmão consegue ver este projeto feito em Portugal.

Hollywood é o expoente máximo… não quer dizer que o festival  seja melhor que os outros todos. Mas, para nós, enquanto artistas e produtores de cinema – acho que ainda estou numa fase inicial da minha carreira, num trabalho de 10 anos, talvez de produção de conteúdos —, se nos dissessem que ia ganhar um prémio em Hollywood, acharia que era impensável. E, claro, vermos o nosso filme associado à maior indústria de produção cinematográfica do mundo é um prazer. Recebemo-lo no final de 2022 como muita alegria. Foi muito bom.

Após esse prémio, o trabalho está em ritmo ascendente?

O reconhecimento é muito bom. É claro que os prémios dão quase um selo de qualidade àquilo que se está a desenvolver. As pessoas percebem que o trabalho que estamos a desenvolver é feito com qualidade. Procuro, todos os trabalhos que vou desenvolvendo, que sejam feitos com o mesmo rigor – mesmo que não seja um filme que eu ache que  vou candidatar a um festival de cinema.

Mas as solicitações aumentaram?

Sim. É claro que começamos a receber mais contactos, as pessoas começam a aproximar-se para perceber o trabalho que desenvolvemos. Criaram-se mais algumas futuras ligações profissionais. Vamos semeando o nosso trabalho com o que vamos fazendo. Não tem que ser no dia a seguir que as coisas nos vão chegar. Já estou a sentir que começou a haver uma atenção maior para o nosso trabalho, para aquilo que vamos desenvolvendo é bom. Acima de tudo, dá-nos força e motivação para continuar a desenvolver mais e melhor todos os dias.

O titulo de Cidadão de Mérito que acaba de receber era esperado?

Sinceramente não foi muito esperado. Achamos sempre que nunca somos, não diria, dignos, mas Viana é uma cidade tão cheia de pessoas de valor que ser Cidadão de Mérito… É claro que, quando recebi a informação do Município fiquei felicíssimo. É sinal que a cidade reconhece aquilo que temos feito por ela.

Todo o trabalho que eu faço não é para ser reconhecido publicamente; acima de tudo, gosto daquilo que faço e gosto da cidade de Viana do Castelo.

O reconhecimento sabe bem e dá-nos força para continuar a produzir mais coisas e ser reconhecido em Viana do Castelo. 90% dos trabalhos que desenvolvo são produzidos sobre Viana do Castelo, não só sobre a cidade, mas sobre instituições culturais da cidade, projetos culturais e sobre diversas áreas relacionadas a este território. Ser reconhecido como Cidadão de Mérito mostrou-me que aquilo que estou a desenvolver, estou a desenvolvê-lo bem. Espero que os próximos anos nos tragam boas ideias para que consiga desenvolver bons projetos para Viana do Castelo. Ganho eu, ganha a cidade.

Escreveu que, só conhecendo o nosso potencial, enquanto povo, é que sabemos das nossas tradições?

É verdade. Acredito mesmo nisso. Só somos o que somos hoje porque temos um passado que nos persegue, no bom e mau sentido. O passado influencia-nos e, de uma forma negativa, em alguns aspetos. Faz aquilo que somos hoje. Com aspetos bons e menos bons. Eu, ao conhecer todos os dias, ao trabalhar sobre este território, fui percebendo, ao longo do tempo, que nós, vianenses e portugueses, somos riquíssimos. Somos um território muito rico. Isso dá-me força para continuar e, aí, vem a tal paixão. Porque conhecemos o território e quando trabalhamos sobre ele, para o conhecer, entregamos um pouco de nós, da nossa alma e da nossa paixão, apercebemo-nos que temos um diamante em bruto para lapidar.

Qual o panorama do audiovisual na região?

Viana do Castelo teve, desde sempre, nomeadamente na associação Ao Norte, alguém que se preocupou em preservar e em registar muito daquilo que é o território. Tiveram iniciativas com as escolas secundárias, mostraram que se podia abrir aqui uma porta para explorar. A Ao Norte sempre foi uma associação que preserva e regista, com projetos como o Lugar do Real. Tem um património, quer de produção própria, quer de projetos que foi alocando.

Há muitos produtores de conteúdos audiovisuais em diferentes áreas. Entendo que me devia centrar no registo do património imaterial. Há outras empresas que estão mais ligadas aos eventos, à parte empresarial. Entendi, devido ao passado que tenho ligado à etnografia, que tinha algo diferenciador que poderia explorar.

Encontrei grande parte do meu trabalho na produção de conteúdos sobre o património imaterial e espero continuar, assim, durante muito tempo. Conteúdo não falta para explorar.

Nesse sentido, já tem algum projeto para os próximos tempos?

Estamos, agora, a desenvolver projetos com as Cantadeiras do Vale do Neiva, que estão a comemorar 40 anos. Há outros projetos que estão a ser desenvolvidos e ainda não são públicos. Poderei dizer que o próximo filme que irei apresentar será esse documentário sobre as Cantadeiras do Vale do Neiva.

Ainda estamos numa fase de registo de entrevistas, mas será para 30 a 50 minutos. Será um documentário sobre as Cantadeiras do Neiva, mas com registo de autor.

Algo mais que queira referir?

Há trabalho que desenvolvo fora de Viana do Castelo e centra-se, também, numa componente artística que é a música. Tive a oportunidade de conhecer, para mim, um dos melhores fotógrafos de concertos do país, o Paulo Bico, do Miguel Araújo, do Pedro Abrunhosa, e tive a oportunidade, nos últimos tempos, de trabalhar com alguns artistas como o Miguel Araújo, António Zambujo, Azeitonas, artistas de renome nacional. Isso foi mais um contributo para que eu pudesse enriquecer a forma como desenvolvo conteúdos.

Por acaso, até foi engraçado. O Paulo Bico esteve cá a fotografar o concerto dos Sons do Minho, com quem colaboro com frequência e foi num desses contactos, que me cruzei com o Paulo Bico e comecei a desenvolver conteúdos para Miguel Araújo, António Zambujo, etc..

Também trabalhou com o Jorge Palma?

Foi um projeto que fizemos em parceria com o Paulo Bico, numa homenagem que a Rádio Comercial fez ao Rui Veloso. Eu estive numa pequenina parte, na produção do Paulo Bico, associado à equipa dele. É um bocado a beleza da produção audiovisual: todos os dias, estamos a fazer coisas diferentes.  

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