(Re)viver a Romaria: pouco corpo, muita alma…

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José Carlos Freitas

Este é um ano em que tudo foi, é e será diferente de qualquer outro nas nossas vidas. É um ano que se desenrola atípico, arrastando-se, lenta e penosamente, um dia após o outro, semana após semana, mês atrás de mês, rumo ao Cabo que desejamos ser de Boa Esperança, mas que teima em ser das Tormentas. É um ano em que tudo se ajustou à nova realidade e em que todos nos adaptámos a esta. “Que remédio”, dir-se-ia. E esta é uma verdade irrebatível: não temos, de facto, outro remédio que não o da resignação e da estoicidade que nos são tão próprios, pois o verdadeiro “remédio” de que necessitamos e pelo qual ansiamos (o tal que nos livrará do “bicho”), tarda em chegar. Haja fé e, sobretudo, paciência de chinês (o que não deixa de ser irónico…).

Em tempos de pandemia mudámos hábitos e rotinas, e aprendemos a gerir as expectativas individuais e coletivas com um pragmatismo impregnado de uma prudência que, em contexto de normalidade de outrora, jamais estaria presente. Mas não é da velha normalidade que se fazem estes dias e se projectam os vindouros, antes de uma nova, diferente e difícil, inusitada e inesperada, inexoravelmente refém das cruas circunstâncias que o destino nos reservou. É neste – e por este – contexto de particular adversidade que cedo percebemos que a realização, nos moldes tradicionais, da nossa festa maior estaria fortemente comprometida, sendo desde logo irrealista e, diria mesmo, ingénuo, acreditar que pudesse passar incólume pelas restritas limitações impostas pelo plano de contenção a que todos, sem excepção, estamos acometidos.

Não nos enganámos. Pela primeira vez em quase 250 anos de celebração ininterrupta, a nossa Romaria em honra da Senhora d’Agonia não saiu às ruas desta enlutada “Princesa do Lima”, e os festejos tradicionais, tangíveis e presenciais reduziram-se à dimensão do digital, mais distante, impessoal e incaracterística, mas segura, inevitável e possível, encerrando um pendor eminentemente mais simbólico que factual. O valor supremo da vida e o dever da sua defesa a qualquer custo impuseram-se à tradição, à fé e à vontade de toda a comunidade vianense. Aceita-se, compreende-se e exige-se que assim seja, à luz de uma lógica de inquestionável “mal menor”.

Mas muito se perdeu, claro, pois as inegáveis virtudes da versão virtual da romaria nunca atingiriam o grau de intensidade da festa real, genuína e profundamente impactante. Sentimos a falta de (quase) tudo. Do cheiro a canela exalado das farturas. Das concertinas e dos cantares ao desafio que, ao dobrar de cada esquina da cidade, anunciam a grandiosa festa e convocam os romeiros. Do monumental fogo-de-artifício, apogeu das noites da romaria. Do espectáculo único que é a manufactura dos tapetes nas ruas da ribeira madrugada dentro, e do inigualável espírito de festa intergeracional que essa noite nos propicia. Sentimos a falta da grandiosa revista de bombos e cabeçudos na Praça da República, cujo débito sonoro ecoa por cada avenida, rua e quelhas adjacentes. Do desfile da mordomia ou do cortejo histórico e etnográfico, mostra única da etnografia e das tradições culturais tão intrínsecas a este território. Da procissão solene ou ao mar, manifestações da matriz religiosa e da fé que são, embora muitas vezes o esqueçamos, o âmago original da celebração. Das ruas engalanadas com as mil cores dos ornamentos luminosos, perfeita extensão da vaidade (ou “chieira”) que todo o vianense sente amplificada por estes dias. Sentimos até a falta dos pregões entusiasmados, da música e das luzes das animações estacionadas no Campo d’Agonia, que à boleia do nevoeiro típico das noites de final de Agosto viajam quilómetros anunciando a festa rainha, e que este ano se calaram, dando lugar à escuridão taciturna e a um silêncio que grita e nos lembra que tudo está diferente. E quão diferente tudo está, de facto.

Perdemos muito, mas não perdemos tudo. Estas festas d’Agonia podem ter sido temporariamente privadas do seu corpo. Mas a alma, sua componente intrínseca e inalienável, perdurou e perdurará mais viva e presente do que nunca, já que essa não se faz de coisas, mas de gentes, de causas e de fé. E como às gentes de Viana não faltam nem causas, nem fé, não faltou nem faltará nunca a alma da romaria.

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