Telhados de vidro

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A. Lobo de Carvalho

É do Novo Testamento que, quando os fariseus trouxeram a mulher adúltera até junto de Jesus Cristo, perguntando que castigo lhe deveria ser aplicado, Jesus disse, simplesmente, aos acusadores, que quem nunca tivesse cometido pecado lhe atirasse a primeira pedra. Confrontados com esta inesperada e sábia resposta, e sem qualquer hipótese de contraditório, abandonaram o local cabisbaixos e ninguém teve a coragem de atirar qualquer pedra. O final da história já todos o conhecem. Este relato bíblico ensina-nos que para se acusar alguém é preciso termos moral para o fazer e não possuir telhados de vidro, sob pena de assumirmos um papel farisaico e hipócrita.
Esta introdução vem a propósito do que se passou, muito recentemente, na Assembleia da República, com dois deputados do PSD, em que um validou a presença de outro que não esteve presente numa sessão plenária. Tal terá acontecido inadvertidamente, segundo a explicação pública divulgada por um dos intervenientes, e o Estado poderá ter sido lesado em cerca de 140 a 150€, a julgar pelo que alguma imprensa noticiou.
A atitude em si mesma, se de facto corresponde à explicação pública, não me parece revestir-se de extrema gravidade, porque a lesão patrimonial provocada ao Estado não assume especial relevância económica; parece-me, todavia, merecedora de censura, sobretudo porque poderá enformar um comportamento que não deixa de abrir a porta às mais diversas cogitações, prejudicando a imagem pública de um órgão de soberania que se exige límpido e transparente nos seus procedimentos, até porque se trata do órgão legislativo por excelência.
Conviria, porém, evidenciar — e sem que com isto pretenda passar uma esponja sobre o caso em análise — que na máquina da Administração do Estado, nas empresas ditas públicas e banco do Estado, muitos abusos se cometeram e, eventualmente, continuam a cometer, e só quem nunca por lá andou é que poderá desconhecer esta realidade. Quantos milhões em desvios de dinheiros públicos, quantas despesas abusivas!… Isto, sim, é de extrema gravidade!
Ora existe uma certa comunicação social que parece estar, estritamente, direccionada para procurar ilicitudes dos servidores do Estado e, à falta de grandes escândalos, têm de se agarrar às coisas pequenas, empolando-as. Naturalmente que os mais expostos, como o são os políticos, designadamente deputados e governantes, surgem como os alvos mais apetecidos, quer pelo impacto social que provocam, quer pelo voyerismo que suscitam. Acredito, mesmo, que haja pagamentos a infiltrados para terem acesso a este tipo de factos internos, pois doutra forma não os obteriam. Como terão descoberto o caso a que nos vimos referindo? Quem foi o primeiro a divulgá-lo e com que intenções? Ninguém duvide que por trás disto estão motivações políticas tenebrosas, em vez da hipócrita e tão badalada transparência!
Seria louvável que os políticos e os candidatos a políticos fossem submetidos a rigorosos testes psicotécnicos para avaliação da sua personalidade, antes de assumirem qualquer função pública, não para os menorizarem, mas antes para os credenciarem para o exercício de funções de responsabilidade no Estado, favorecendo não só a sua credibilidade pessoal, mas principalmente visando uma garantia de fidelidade profissional. Porventura, não será o suficiente para detectar as tendências intrínsecas de cada um, mas julgo que seria um avanço muito positivo. Porque não generalizar este procedimento, em uso, aliás, em tantas instituições?
Voltando ao caso que serve de mote a esta crónica de opinião, eu diria que não devem abraçar o mundo da política pura e dura, ou ocupar cargos estaduais, todos os que não possuam força mental para ultrapassar as suas fragilidades. Poderão acabar por criar telhados de vidro que lhes serão, bem como aos órgãos onde trabalham, extremamente prejudiciais, gerando estigmas que a sociedade de hoje, mais atenta e informada, não perdoa.
Numa linguagem bíblica, tal como iniciei esta crónica, diria que os dois deputados terão cometido um “pecado venial”, num país onde têm sido abundantes os pecados mortais que, curiosamente, de modo fácil são colocados na prateleira do esquecimento. Prefiro, assim, não atirar pedras e aceitar a explicação pública fornecida, que me parece perfeitamente plausível. E quem, no Parlamento, nunca pecou (mesmo que seja um pintar de unhas…) que tenha a coragem de arremessar a primeira pedra!
A luta política tem destas coisas, umas mais sérias e outras menos. No actual ponto da nossa evolução democrática e social vem-me à memória uma frase de Napoleão Bonaparte, célebre imperador de França, segundo a qual “nunca saberemos quem são os nossos verdadeiros amigos, até cairmos em desgraça”. Espero e desejo que os deputados em causa, ultrapassem rapidamente esta situação embaraçosa e não arranjem telhados de vidro. Estou certo que os verdadeiros amigos e companheiros não os abandonarão.

(Foto: “Caros Ouvintes”)

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