“Vamos ter uma 2.ª pandemia: a das doenças crónicas e oncológicas”

José Traila Campos é diretor do Serviço de Radiologia integrado do Hospital Santa Luzia (ULSAM), há cerca de quatro anos,e acumula, desde 2019, com as funções no Hospital de Santa Maria Maior (Barcelos). É “um destacado” médico vianense que também está na linha da frente no combate à Covid – 19 e que conhece profundamente a realidade local. Em conversa com A AURORA DO LIMA, falou disso mesmo.

A AURORA DO LIMA (AAL) – Como é que a ULSAM está a acolher doentes Covid?
JOSÉ TRAILA CAMPOS (JTC) – Temos de dividir isto por fases. Já estávamos minimamente preparados para o início do surto Covid. Não fomos dos primeiros países a ser atingidos. Na Europa, foi a Itália, o que nos permitiu um certo tipo de adaptação. Podemos dividir o que foi o serviço de urgência, os serviços programados de consulta e exames externos.
Em relação ao serviço de urgência conseguimos separar, totalmente, o fluxo de doentes respiratórios ou Covid’s de outros doentes. Estes são atendidos na Urgência, são triados logo para a parte externa de doentes respiratórios, onde têm os consultórios com os médicos, o apoio de enfermagem, raio X. Os restantes doentes da Urgência, como doentes abdominais ou ortopedias, têm uma parte limpa onde entram diretamente na Urgência habitual, onde têm os seus médicos separados e o seu raio X.
Portanto, temos totalmente separados dois fluxos.

AAL – Quantas áreas Covid existem?
JTC – Temos a área Covid urgente (triagem e 1ª avaliação pós-triagem), depois uma unidade de avaliação clínica, uma permanência de curta duração, onde são avaliados e é decidido se são encaminhados para casa, em tratamento ambulatório, ou, ficando no hospital. Aqui há duas hipóteses: ou vão para uma enfermaria Covid (já temos um duas) ou, se foram muito gravosos em termos clínicos, poderão ir para os Cuidados Intensivos. Estes foram divididos em dois. Um para doentes respiratórios e outro para doentes não respiratórios ou suspeito de Covid.

AAL- Há profissionais de saúde só adstritos a cada uma destas áreas?
JTC – Quem está adstrito a uma área respiratória, só trabalha nesta. Para evitar que as infeções andem a passar de doentes de um lado para doentes do outro ou entre profissionais de saúde.

AAL-Em relação a especialidades que não respiratórias, houve decréscimo da procura!
JTC – Há muitos doentes do foro cardiovascular, do foro neurológico, oncológico, estão com muito medo de ir aos hospitais. Vamos ter uma segunda pandemia. A das doenças crónicas e das doenças oncológicas. Há que despertar para o que vai funcionar diferente nos hospitais, porque as pessoas devem estar seguras e devemos fazer um esforço para recuperar esta lista de espera que temos agora.

MELHOR SÍTIO É O AMBULATÓRIO

AAL-Também se prevê aumento doenças na área da saúde mental?
JTC – O stress, o menor seguimento pelos colegas das especialidades neurológicas e psiquiátricas, há todo um risco de desenvolvimento e agravamento da doença mental. Agora, devo dizer que o sistema se tem organizado em teleconsulta e apoio domiciliário. É importante que as pessoas também nos procurem.

AAL – E os idosos… são ‘despachados’ para os lares?
JTC – O melhor sítio para o doente estável ser tratado é no ambulatório. Este implica a casa das pessoas, mas, infelizmente, nem sempre isso não é possível. Depois temos as pessoas que estão nos lares de idosos. É importante que estas tenham o seu médico responsável, o seu enfermeiro, auxiliares preparados e equipados, em articulação com os cuidados de saúde primários e centros de saúde, as equipas domiciliárias, assim como o próprio hospital.
Temos uma taxa de 100% de seguimento: os doentes que estão em ambulatório têm sido contactados regularmente, os próprios ou os prestadores de cuidados.

AAL – Os hospitais de retaguarda (Seminário e Centro Cultural) não estão a funcionar?
JTC – O previsto é serem centros de ambulatório. Em termos de esgotar a capacidade dos hospitais e, nas nossas enfermarias, existirem doentes que ainda não estão estáveis para irem para casa – precisam de um apoio contínuo de médico e enfermeiro. Há doentes que não têm esses cuidados em casa e há lares que não estão preparados. Servia de apoio clínico e social.

AAL -Mas essas unidades continuam sem utentes!
JTC – Estão preparadas para funcionar, mas, neste momento, ainda não têm doentes. Tem tudo corrido, felizmente, bem. Agora, temos de pensar que este é o primeiro surto. Enquanto não houver vacina, podemos ter mais e mais graves. Ter a estrutura preparada é muito importante. Tenho que falar aqui do papel da Liga de Amigos do Hospital. Um excelente apoio.

AAL -Já há registos de profissionais de saúde infetados em Viana?
JTC – A taxa global e comparando com outros países… há os que têm 20%; em Portugal temos menos 10%. Os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos – estão muito bem preparados em Portugal. Temos alguns infetados em Viana, mas estão estáveis e alguns já voltaram ao serviço.

AAL -Quantos?
JTC- São dados confidenciais. Não lhe posso dizer que sejam mais de 10, mas também não tenho a certeza.

AAL – Há dias o Bloco de Esquerda questionava o governo sobre os alegados riscos expostos pelos profissionais de imagiologia. Como chefe deste serviço o que tem a dizer?
JTC- O hospital de Viana, ao contrário da maior parte dos hospitais, optou por um serviço de entregar uma concessão ou PPP a uma empresa. Em termos éticos, não me posso pronunciar sobre essa solução com a qual não concordo. Acho que o serviço deve ser público. O problema não é nem má vontade da empresa, nem do hospital. É a articulação que não funciona tão bem como achávamos. Neste momento, com intervenção minha e de pessoal da ULSAM, os problemas estão sanados. A questão de base aqui é que serviços essenciais de saúde deviam ter uma gestão pública. Na minha opinião. De resto, não me pronuncio, trabalho com as duas partes.

HOSPITAL MAIS SEGURO QUE IR ÀS COMPRAS

AAL – A ULSAM está a preparar futuro, incluindo com doentes de outras áreas?
JTC – Quando o surto começou, em maior força e número no país, houve regras do Ministério e Direção Geral da Saúde de parar a atividade programada.
Vou-lhe dar o caso do meu serviço, porque pode servir de exemplo para as consultas e as cirurgias. É semelhante. Durante duas semanas parou totalmente, excetuando os casos mais graves e oncológicos, a atividade programada. A partir daí, começamos a fazer a avaliação caso a caso, o que é mais importante clinicamente. Obviamente que juntamos um atraso total de duas semanas e parcial de dois meses.
Não tenho dúvidas que há pessoas que precisam de cuidados e ser avaliados. Agora vamos passar à 2.ª fase, a partir de maio, com um controlo rigoroso à entrada dos doentes nos serviços, com vigilância de temperatura, questionários, toda a gente a usar máscara dentro do serviço e a lotação dos serviços e dos exames a reduzirem-se para metade.
Vamos começar a ter a produção basal (o máximo que conseguir fazer com as medidas de segurança), sobretudo dos casos mais graves. Imagine que o serviço de radiologia produz 100 rx por dia. Não vamos conseguir, com estas regras de segurança superapertadas, produzir isso, apenas 50.
É importante os doentes terem a noção de que vai ser mais seguro as pessoas virem ao hospital ou a uma clínica ser tratado ou fazer um exame do que ir a um restaurante, ir às compras ou estar na rua. As pessoas não estão esquecidas, o acesso à Saúde é que vai mudar para sempre; enquanto não houver uma cura, não há alternativa. Não é possível o doente achar que vai marcar um exame hoje e fazê-lo amanhã. As coisas vão começar a ser regradas e com alguma lógica clínica: os doentes mais graves, primeiro. Mas toda a gente vai ter acesso à Saúde. Simplesmente, o ritmo vai ser mais lento por causa das medidas de segurança.

AAL – O material para os profissionais tem sido suficiente?
JTC – Na primeira fase – e não por responsabilidade do hospital -, mas por falta de fornecedores, houve alguma dificuldade. Não chegamos a situações de ruturas. Temos tido material, com algumas limitações de stock, mas temos reiventado o sistema. No facto dos hospitais não estarem lotados temos de agradecer à população.

MAIS INFETADOS E O VERÃO

AAL – A lenta abertura das restriçoes poderá trazer mais casos de infetados?
JTC – Temos de ter noção de que a Covid, enquanto não houver uma cura, um tratamento 100% eficaz ou, sobretudo, uma vacina que previna a infeção e o contágio entre pessoas, vai ser uma doença de surtos. Estamos com medidas de confinamento severas e não há quase infeção. Levantando-as vai haver mais infeção. Mas não queremos atingir números que sejam incomportáveis para o sistema de saúde. Queremos surtos com uma curva plana, para conseguir tratar os doentes sem grande morbilidade e termos o país a funcionar. Não posso deixar de tratar um cancro, tratar um apêndice, deixar de fazer um TAC. Ao não permitirmos que haja um grande pico, não entupimos o sistema de saúde. Estamos a fazer uma gestão de risco/benefício.

AAL – Como está a situação no Alto Minho relativamente ao país e região Norte que é, de longe, onde se registam mais casos?
JTC – O Alto Minho, em relação ao Norte, não está mal. Tem sido uma exceção. O que me preocupa? Ao chegar o verão, começarem a vir as pessoas do Porto e Lisboa para o Alto Minho, bem como os emigrantes. Isso é que vai ser o “mandatório”. Protegermos a população, sobretudo os idosos, e pedir a essas pessoas que tenham algum bom senso nos seus hábitos.

AAL – Há muitos doentes internados nos cuidados intensivos em Viana?
JTC – Muito poucos. Imagine a capacidade instalada de 12 a 15 ventilados Covid, que podíamos expandir até 30/40 em caso de catástrofe, e, no máximo, tivemos 3 a 4 ao mesmo tempo.

AAL – Há já notícias de alternativas aos ventiladores com tratamentos menos agressivos e melhor taxa de recuperação. É assim?
JTC – Até este momento, há várias ideias diferentes sobre a patologia e o que vai acontecer. Estamos a adaptar as estratégias internacionais, designadamente da OMS. Portanto, neste momento, o ventilador é muito importante.

PRECISA-SE RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CAPAZ

AAL – Apontam-se sequelas nos recuperados da Covid, designadamente coágulos e perda de paladar e olfato!
JTC – Os doentes Covid podem ficar com sequelas, umas temporárias, outros que poderão ser permanentes. Fala-se em 20%. Com os doentes que são curados do Covid, teremos de fazer um plano com TAC torácico para avaliar como ficaram os pulmões depois da infeção.
Há um problema que se está a tentar resolver este ano. Não temos uma ressonância magnética capaz em Viana. Acontece que o Covid provoca varias lesões, tanto no cerebro, como nervos, olfato, perder capacidades. Esses doentes daqui a 2-3 meses vão ter de ser avaliados com ressonâncias magnéticas para avaliar como ficou o cérebro e os trajetos nervosas. O problema é que não tenho uma ressonância magnética capaz para isso. Deixo aqui um apelo à sociedade civil para, dentro do possível, ajudar. Era muito importante para o Alto Minho ter uma boa ressonância magnética para seguir estes doentes que vão ter incapacidades.

AAL – Algo mais que queira acrescentar?
JTC – Queria referir que as pessoas, agora, têm de procurar os cuidados de saúde, sobretudo as de doenças crónicas e oncológicas.
Depois, os hospitais estão a preparar todas as condições de segurança com os doentes para puderem estar à vontade e fazerem os seus exames em segurança. Vão ter é de ter mais paciência porque vão existir mais cuidados, vai demorar, vai haver mais separação entre doentes. Os tempos mudaram. Mas estamos aqui para sua segurança. Vai correr bem.
Ainda fazer um apelo para a importância de ter uma ressonância magnética em Viana do Castelo para prestar os melhores cuidados.

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