(V) – Da tertúlia da Paris à Grande Lisboa

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Carlos Fidalguinho

Ainda hoje guardo (de momento, confesso… não sei onde) um retrato meu que o Amorim desenhou naquele salão com uma esferográfica de quatro cores, na contracapa duma tábua de logaritmos, de que todos admiraram a certeza do traço sem retoque, a verossimilhança, ficando eu todo contente só por ser o modelo. Dos diversos animadores daquela tertúlia juvenil, de composição variável e para mim, a princípio, de frequência finissemanal, o Zé António foi inquestionavelmente aquele de quem mais gostei, creio que por ele reunir como nenhum outro dois atributos preciosos: era um galã, chamava a atenção de senhoras e senhorinhas, pelo que era algo vantajoso estar do lado dele; e era um óptimo conversador, discorria com inteligência e bem reflectidamente sobre qualquer assunto de interesse, não apenas os seus temas predilectos, num tom, mesmo falando de futebol, invulgarmente correcto, sereno, delicado. E não se debatia somente futilidades correntes ou questões menores ou pacíficas. Recordo que quase todos nós, além de muitos outros jovens, fomos por então intelectualmente iluminados, em diferentes momentos, pela erudição e pelo espírito progressista doutro — o mais distinto — frequentador da Paris, o cultíssimo pedagogo Artur Castro, um homem de letras e de ciências, poliglota, incluindo latim e grego, de quem, sob o pseudónimo Joel, as folhas do «Aurora» de há cerca de sessenta anos conservam o ineditismo dos poemas de rima branca (lembro um, em particular: A Dor), de par com crónicas de cinema (dos filmes exibidos nas sacramentais soirées de sábado e, ou, matinées de domingo no Cinema Palácio, à época o de traço mais moderno no País) que, algumas delas (retenho a d’Os Irmãos Karamazov, de Richard Brooks), colheram menções laudatórias nos meios cinematográficos lisboetas; em 1959 traduziu, por puro diletantismo, sabendo que ninguém o editaria, A Respeitosa, peça proibida de Sartre (cujo título original, La Putain respectueuse, mesmo em França esteve censurado até, salvo erro, 1963), dando o manuscrito a ler a um trio de amigos da máxima confiança.

Apesar de todo este ambiente extraordinariamente cativante, ou antes, quiçá, em virtude das asas que esse agradável convívio propiciava à imaginação fértil duma alma rebelde, como era o Zé António, a verdade é que a partir de certa altura percebeu-se nitidamente que a pacatez extrema da pequena cidade de província que era e continua a ser a nossa amada Viana já não o satisfazia, ele ansiava por espaços mais amplos. E ser-lhe-ia feita a vontade, hélas!

Pela Primavera de 1958, ainda menor — a maioridade, então, atingia-se aos vinte e um anos —, órfão de pai desde tenra idade (a Mãe, viúva desde os vinte e oito anos, manteve esse estado para educar a prole, continuando a trabalhar também com o seu pai na alfaiataria), teve de ser o avô materno a conceder-lhe a emancipação. Porquê? Porque o Zé António conseguiu aquilo a que aspirava: funcionário extranumerário no Tribunal Judicial de Viana, aí soube no início desse ano da existência duma vaga de oficial de justiça no Tribunal de Execução de Penas, em Lisboa, concorreu e foi admitido. Ia emigrar para a capital! Esse seria, afinal, um lance de má sina, foi a sua perdição. Lá seguiu, cheio de entusiasmo, com a sua inseparável viola na bagagem.

Por recomendação dum dos novos colegas, ficou hospedado numa residencial na Rua Rodrigo da Fonseca, central, num quarto andar. Não tardou a fazer o “reconhecimento aéreo” da cidade: a foto mostra-o em boa forma no jardim do Castelo de S. Jorge, junto ao miradouro com vista panorâmica sobre a Baixa.

O que terá sido a sua vida na desejada Lisboa logo desde que ali chegou, esse seu percurso aventuroso, ficaria lapidarmente resumido na frase com que a dona daquele estabelecimento hoteleiro onde esteve instalado, não há muito tempo, em Outubro de 2014, respondeu a um determinado vianense que, sabendo dessa antiga morada dele e tendo lá ido de propósito, com ela chegou à fala, embora noutro local (a residencial já não existe). Assim se expressou a idosa senhora: «De Viana do Castelo? Conheceu-o bem? Então já sabe… Ai, que pena que tivemos! Era uma jóia, aquele rapaz… Mas não tinha juízo nenhum! Não imagina, tantas vezes que ele chegava para se deitar, nada cedo, bastava que alguém lhe telefonasse a dizer que havia uma festa no Bairro Alto, ou por aí, que ele pegava logo na viola, saía à pressa e já nem vinha dormir. Ia directo para o Tribunal, de manhã, com a viola e tudo…!».
(continua)

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