Dum campus da justiça ao gueto dum sanatório

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Carlos Fidalguinho

O que a compungida anciã não disse a respeito do Sr. José Amorim, não sei se por não saber, é que, habitualmente, este seu tão estimado hóspede ia-se deitar, já “nada cedo”, depois de ter concluído a ronda das boîtes e cabarés que um oficial e cavalheiro cônscio da responsabilidade de ser portador dum livre-trânsito de serviço não podia descurar no horário pós-laboral (e eu jamais poderei esquecer um certo dancing dessa lista, que ele me sinalizou com providencial antecedência: “O Caco”, na Camilo Castelo Branco, que foi a minha conhecença de bombordo quando no Outono de 1966, cadete na Escola Naval, eu próprio pude penetrar na encantatória vida nocturna da Lisboérrima). E, sobretudo, o que a velha senhora não contou ao seu inopinado visitante, porque seguramente não sabia, é que várias das ditas festas “por aí”, na urbe lisbonense, por mais incrível que pareça, tinham lugar, discretíssimo, na sede da insuspeita Polícia Judiciária. Exactamente! O que, é óbvio, teria de ser por uma boa causa, como já se perceberá, graças à explicação seguinte, que da fonte original só um núcleo restrito de confidentes recebeu. Sempre que numa rusga da P.S.P. a locais de presumida prostituição eram encontradas suspeitas sem título de identidade válido, a respectiva detenção passava para a competência da P. J., que era logo chamada, a fim de conduzir as putativas delinquentes para as suas instalações; ora, nos turnos vespertinos aí laboravam normalmente agentes mais novos, alguns estagiários, tudo boas praças, que, condoendo-se do azar das damas deslocadas, habituadas ao ambiente feérico dos seus centros de trabalho e que agora iriam passar a noite no silêncio frio duma cela exígua, tratavam de lhes organizar a recepção da maneira mais agradável: alinhavam as secretárias dos inspectores até formar uma espécie de passerelle, para onde eram todas gentilmente convidadas a subir e, nesse piso, as voluntárias encetavam, para aquecer, um concurso de strip-tease com direito a prémio (inconfessável). Claro que para isso era imprescindível a colaboração dalguém, dentre os quadros da “Judite” ou afins, que marcasse o ritmo com mestria, um músico rodado, munido de instrumento próprio e, not the least, com espírito de corpo, coração ardente e boca sabiamente fechada, equação multilinear esta que, está visto, tinha uma solução única, em toda a Lisboa: era o Baptista (nom de guerre, para disfarçar), urgia avisar por telefone o proficiente Sr. Oficial de Justiça José A. Baptista de que estava chegada a hora H de mais uma operação especial, basto secreta, «não se esquecesse de trazer o equipamento de som».

O Baptista, digo: o Zé António, pensando bem, foi duma resistência física excepcional. Aguentou quase quatro anos, quatro, essa vida de missão tão aprazível quão extenuante. Em meados de 1962, a seguir às festas dos Santos Populares, porém, um exame médico impostergável, compulsivo, não lhe consentiu alternativa: foi-lhe diagnosticada a “doença dos poetas”, a tísica pulmonar, vulgo tuberculose, ou “peste branca”! Encostado às cordas, ouvido esse veredicto, houve pouco depois que aceitar a sentença: iria ter de se apresentar na Estância Sanatorial do Caramulo, na vila do Guardão, município de Tondela, a 800 metros de altitude, pois tivera a sorte de haver uma vaga no Grande Sanatório, onde ficaria internado, e, se tudo corresse pelo melhor, poderia estar de regresso dentro de um a dois anos, curado. Abalou vencido para esse desterro, levando na bagagem, para o que desse e viesse, a velha viola.

(continua)

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