(XI)- Viagem fatídica: a morte em acção de bem-fazer

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Nos princípios da década de ’70 — vivia eu novamente no Porto, onde constituí família — o tédio voltou, inelutavelmente, a assolar a mente, a tolher o espírito, deste nosso conterrâneo e meu (e de muitos) saudoso amigo, na sequência imediata da partida do seu insubstituível parceiro de aventuras no termo caramulense. Continuou a sua rotina de bem-fazer junto, principalmente, dos mais pequenos, mas a tradição das farras já não era a mesma, já nem sequer vinha tanto a Viana.

O tempo custava mais a passar, mas, enfim, lá ia passando. Em 1973, no dia 14 de Agosto — entre a Romaria de Santa Marta e a Romaria d’Agonia, e ele ali no Caramulo, «sozinho»! —, escreveu dois postais ilustrados ao casal Almeida, que se encontrava de férias no Estoril com os filhos, no segundo dos quais refere um acontecimento alegre, dias antes, por mor do qual transitara pela serra e, «para cima, nem existia nevoeiro, caramba. A motinha voava, às 7 da matina…». Mas a marca mais significativa registada nesse bilhete-postal é que o passarinho cantante que ele sempre, sempre, desenhava nos seus escritos foi nessa ocasião substituído por uma teia de aranha e respectiva moradora…

No final desse ano, em 20 de Dezembro, também uma quinta-feira, estava ele embrenhado na organização dos presépios e outras montagens próprias do Natal para abrilhantar a festa dos seus amiguinhos, a esposa dum médico residente, pertencente a um grupo de teatro amador de Nelas, pediu-lhe para ele ir lá pintar os cenários duma peça, um auto, que queriam representar; era certo e sabido que do seu espírito solidário só podia brotar uma resposta: ficou de ir nesse mesmo dia, logo que pudesse.

Nem terá jantado; às 7 da tarde, nevava intensamente na serra, podemos imaginá-lo na descida por Tondela, mal agasalhado, em cima daquela motinha que até nas subidas voava, a iniciar o arco rodoviário de cerca de 50 quilómetros que o separavam do destino. Quando lá chegou, branco como a neve que o cobria, encharcado, olharam para ele, não o deixaram falar; deram-lhe roupa e forçaram-no a deitar-se numa cama onde quedou prostrado. Observado de urgência por um médico, foi-lhe diagnosticada uma pneumonia galopante; no dia seguinte, manhã cedo, foi transportado de ambulância para o Caramulo, onde ficou internado no Pavilhão Cirúrgico, logo tendo começado a transparecer para o exterior o seu estado crítico.

O quadro clínico típico da intoxicação viral (calafrios, espasmos musculares, colapso respiratório, infecção generalizada) desenvolveu-se durante três dias, sem resposta sensível à potente medicação antibiótica; faleceu no domingo, dia 23, há precisamente quarenta e cinco anos, seis dias depois de ter celebrado o 35º aniversário. No dia seguinte, os miúdos do Sanatório estranharam imenso que o Pai Natal não soubesse tocar nem cantar as canções bonitas do costume; para muitos, nem houve Natal: o menino grande morreu, o Menino Jesus não nasceu…

Nesse dia, o do funeral, a mãe do Zé António, D. Rosinha, presente na companhia dos filhos residentes em Viana, convidou o casal Almeida a visitarem-na em sua casa, o que foi imediatamente aceite, com certa comoção, ficando logo combinada a data da viagem.

Vieram também com dois dos filhos e, à despedida, receberam da agradecida convidante uma lembrança inesperada que muito os enterneceu: uma garrafa de jeropiga que seu pai, o mestre tailleur e licorista amador José Ciranda, entretanto falecido, tinha preparado em 1938, o ano do nascimento do José António, o primeiro neto. Essa garrafa não foi aberta, ainda hoje está por abrir. A contemplação ocasional da garrafa intacta tornou-se para aquela família uma forma distintiva, gratificante, de matar saudades dum querido amigo que continua presente na memória mais cordial de todos quantos o conheceram, um jovem inquieto, abnegado, que na morte exaltou o génio de artista que tão bem o caracterizou.

Com a mesma idade e a mesma vontade de consumar uma fuga de Florbela e a mesma determinação de Antero, não recorreu a barbitúricos para forçar o edema nem à bala ensurdecedora: usou como ninguém uma banal motocicleta para se libertar. O bom menino grande que o Zé António Amorim sempre foi ao longo de toda a sua curta vida que recordamos teve a arte e o engenho de fazer o seu coração liberto mergulhar no sono eterno do poeta sobre as rodas duma incólume mota voadora. Paz à sua alma, lá no assento etéreo aonde subiu!

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