Escrevo na tarde em que foi a sepultar a extraordinária escritora que foi Agustina Bessa-Luis, essa invulgar vocação literária, que, parecendo completamente alheia à “política”, nos seus escritos, navegava, sabiamente, nas águas dos humanos comportamentos políticos. Apetece recorrer a pensamentos seus (*) para nos sentirmos todos como políticos responsáveis, e responsáveis pelos políticos, porque todos vivemos entre o geral “antagonismo de interesses, avidez disfarçada de grupos e subgrupos”, a defender ou a promover os nossos próprios interesses.
Dizia Agustina: “Ninguém está inocente, pois cada indivíduo é responsável pela maneira de um Estado ser governado. E um crime continua a ser crime, mesmo quando ele fica submerso nas nossas pequenas fraudes de negligência e na participação numa falsa normalidade pública”. Agustina referia-se, particularmente, ao regime derrubado no 25 de Abril de 1974, mas generalizava logo, dizendo que “é dever dos povos manter sob controlo os seus governantes”.
A questão da política e da responsabilidade política é a questão do poder a que cada um tem direito. O bem-estar de qualquer sociedade e a sua capacidade de progresso harmonioso dependem do seu equilíbrio de poder. Como dizia Agustina “todo o poder é impuro”. Não devia ser, mas é ainda, porque, dizia: “o poder é ainda algo que se comete e não algo que se distribui de maneira inofensiva e graciosa”. O ideal do poder humano é que seja de todos e de cada um, sem violência, com respeito e harmonia, por exigência da dignidade de cada um. O regime democrático é o regime que mais tende para esse ideal, precisamente porque pretende que todos participem do poder comum, pretende que o poder seja distribuído por todos. Também, por isso, o regime democrático é o mais difícil e o mais exigente dos regimes políticos. Quando todos querem tudo ao mesmo tempo, a sociedade desagrega-se no caos total.
Como dizia Agustina, “é obrigação distinguir entre o permitido, o justificável e o necessário – coisas diversas e mediante o equilíbrio das quais uma democracia moderna tem que nascer e encontrar a sua legitimidade”. Para procurar o equilíbrio é dever nosso escolher quem melhor nos represente, com a capacidade de distinguir melhor o que é permitido, o que é justificável e o que é necessário. Aqui reside o maior problema da política e do regime democrático, na eleição de quem melhor represente o equilíbrio das justificadas ambições sociais, quem melhor distribua poder, quem menos nos defraude, servindo-se do poder.
A experiência coloca-nos, frequentemente, no dilema tentador e irresponsável de desistir da democracia, desistir da política, porque muitos políticos que elegemos (talvez demasiados) nos enganaram, servindo-se do nosso poder, do nosso trabalho, das nossas vidas, para satisfação das suas ambições pessoais, de ilusórios prestígios, de injustos proveitos, tantas vezes mesquinhos e sórdidos.
Facilmente nos desculpabilizamos com a ignorância dos mecanismos que regem as organizações políticas, particularmente os “partidos” políticos, onde os seus ideais podem ser pervertidos por pretensos políticos sem o carácter indispensável para o exercício honesto do poder responsável. Um livro como “O meu desencontro com a partidocracia-1”, do ex-autarca vianense Defensor Moura, é particularmente esclarecedor e pertinente, pelo que nos relata da sua experiência partidária, capaz de nos elucidar e também capaz de nos alertar, para as perversidades da ambição política.
Para a nossa individual responsabilidade política, a força testemunhal de Defensor Moura pode acentuar as nossas frustrações democráticas, agravando o nosso dilema de desistência da política e da democracia, mas, por outro lado, alerta-nos para a nossa responsabilidade em obter esclarecimentos transparentes de quem pretenda representar-nos no serviço e distribuição do poder. O livro de Defensor Moura é uma originalidade na bibliografia política, em geral avessa ao testemunho concreto, é um gesto de coragem, mas é também um exemplo da autêntica e responsável assumpção do poder de cada um, num contexto democrático do poder de todos.
(*) As citações de Agustina Bessa-Luis foram extraídas de uma comunicação inserta no livro “Contribuição carinhosa da Angústia”, Lisboa, Guimarães Editores,pags.39-42.
José Veiga Torres
Foto: Notícias ao Minuto