Uma viagem de cem anos (2)

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Damos continuidade ao trabalho do qual iniciamos publicação na última edição deste jornal, tratando-se da comunicação feita por Artur Maciel (jornalista e escritor) na conferência do Centenário da “A Aurora do Lima. Nesta parte, um admirável deambular pela Viana antiga.

Em 1855, quando nasceu a “A Aurora do Lima”, havia apenas sete anos que D. Maria II elegera Viana a cidade. A terra ganhara em categoria, se bem que – quanto a mim – a sua designação tivesse perdido em cunho e sabor local. Ainda agora não percebo – ou faço por não perceber – a razão por que o qualificativo tirado do seu Castelo se considerou mais honroso do que o que tradicionalmente lhe sobrevinha desta doce foz do Lima, onde idilicamente poisa, e com o que só tem motivos para se satisfazer.

Talvez que se molestasse de lhe chamarem em revoadas, ora Viana do Minho, ora Viana de Valença, ora Viana de Caminha!…

Se eu fosse do tempo e se a mudança se operasse por votos – o que nada teria de importuno, já que estava na exuberante adolescência do sistema eleitoral – no papelinho que lançasse à urna, só trocaria a Viana da Foz do Lima… pela Viana do Mar!
Mas isto são modos de ver. E não é fazer questão de que todos os que me escutam coincidem com os meus. Prefiro tentar que me acompanhem noutras vistas.

Seremos porventura capazes de imaginar como era a Viana dessa época? De conjecturá-la, em simples relance, qual o esbatido quadro, por indícios da sua paisagem topográfica e do seu panorama humano? Talvez seja mais difícil de que arquitectar uma divagação sobre a lua, tanto, ultimamente se conhece do satélite que nos ilumina de noite!

Não avistamos, ao desembocar dos pinhais de Darque e ao enfiar, pelo cais novo, direitos à capelinha de S. Lourenço, onde rompia a ponte de estacas que o abade de Lobrigos, 39 anos antes, mandara construir, – não avistamos uma fofa manta de folhagem a cobrir a montanha de Santa Luzia. O pinheiral ficava entre o sopé e a meia encosta, a servir de docel aos mosteiros de S. Teotónio e Sant’Aana. Apenas surgia uma frondosa mata no recôncavo em que se ocultava, junto ao musgo das fontes e à sobra das carvalheiras, o conventinho franciscano. No topo descarnado do monte, alçava-se a ermida, mas só ali levavam caminhos de cabras. Ia-se lá uma vez por ano, ofertar olhos de cera à padroeira e merendar entre os penhascos e as urzes.

Transposto o rio, temos quase na nossa frente o campo de S. Bento, já crismado de campo de Príncipe, e fica-nos para a esquerda a mole do convento beneditino, cuja longa fachada sul defronta, de perto, aquelas mesmas águas que antes vinham trepar até à rampa dos estaleiros manuelinos.

Não subimos ao pote das almas, para tomar a Piedade, virar à praça das couves e entrar pelo eirado. Seguimos o aterro, passamos rente ao chafariz, mandado erguer pelo Conde da Bobadela, à boca da praça das couves, já agora com a data de 8 de Maio no letreiro.

Antes da ponta do cais da alfândega, abeiramo-nos – imagine-se! – de outro chafariz, encimado este pela figura de Mercúrio. Armado com o grosso fuste do pelourinho filipino a Câmara de 1840, que o fez construir com a mitológica ideia de exaltar o comércio local, questionou muito tempo, quanto a ficar o filho de Júpiter voltado para o rio ou para a vila. E teve razão! Os edis deviam saber que esse mensageiro dos deuses e deus ele próprio, assim como o era da eloquência e do Comércio, era-o também dos Ladrões…

Vamos passar agora sob o arco do postigo ou porta de S. Crispim, que talvez por ter sido a principal, foi a que mais tempo resistiu à demolição. E estamos a galgar a praça velha, designação tradicional que a euforia da Primavera de 52 também levara a mudar para rua de D. Luís.
Continua

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