Chegados a Santa Luzia, quase nos passava despercebido. Não fosse a esposa Belmira Santos e nem daríamos por ele. A manhã era fresca e, bem agasalhado, gorro bem ajustado à cabeça para se defender da brisa que soprava, Joaquim Terroso, de binóculos bem encostados aos olhos, mirava a cidade e arrabaldes. Remexia a roldana que aproximava e afastava a imagem captada, como a querer tocar com as mãos o que ia observando. “Meu Deus, como tudo se tem alterado”!!!, como isto era quando parti para Lisboa”, dizia Terroso. Aproximamo-nos e, junto ao ouvido, dissemos-lhe: – tudo muda, caro Amigo. – Oh, como estais? Terroso saudou-nos, para voltar à pose inicial. – Sabem, estava a ver se descortinava o Castelo do Neiva, essa magnífica terra de pescadores e de sargaceiras, sempre brilhantes no desfile das nossas Festas d’Agonia. Conhecem? – Não insista muito, porque não vai conseguir ver a zona piscatória dessa terra. – Sou teimoso que baste, e estes binóculos atingem uns bons 20 quilómetros. – Pois, observará, mas não zonas ocultas. Como não o convencemos, afastámo-nos sem o perder de vista, à espera que se cansasse. A esposa Belmira é que não estava a gostar nada da teimosia do marido. Aproximamo-nos e forçamos. – Sabe, em 1936 havia 500 jangadas dos sargaceiros no Castelo do Neiva e o número de barcos superava a frota dos pescadores de Viana.
Trancoso arrumou os binóculos na caixa e, com simpatia, entregou-os à esposa, como a preparar-se para o que pensava ser uma longa conversa. Sentámo-nos todos no escadório do templo, junto à porta de entrada, já que a temperatura teimava em não passar de valores pouco auspiciosos. Para surpresa nossa diz-nos: “Castelo do Neiva fica para outra altura. Gostava que me falassem dos Estaleiros Navais. Sei pouco da história dessa empresa, que tão gabada foi por décadas e da qual, como vianense que se prese, tanto orgulho tinha. Ouvia falar da construção de navios para todos os continentes da terra. Meu Deus, Viana gabada no mundo inteiro”. É verdade? – Sim, mas isso “dá pano para mangas”. Temos que nos ficar por uma conversa breve. – Porra, nunca tendes tempo para mim. Mas está bem, algo que me elucide me direis. Já agora, fiquem sabendo que, menino, ainda longe de rumar à capital, marquei presença na entrega dos três primeiros navios que os ENVC construíram. “O Senhor dos Mareantes e a Senhora das Candeias, para a Empresa de Pesca de Viana, e o São Gonçalinho para a Empresa de Pesca de Aveiro. “Entregues a 10 de Julho de 1948”, dissemos. – Bom, tenho que reconhecer que vocês sabem da “poda”. Como o vosso tempo é escasso, falem então o possível da vida desse colosso da construção naval.
Mas, deixem que vos diga que aquela cerimónia de entrega dos três primeiros navios foi uma coisa nunca vista. Grande festa, rapaziada. Que emoção!!! Um mar de gente junto às docas, todos a acotovelarem-se para verem a abertura das adufas que haveriam de encher de água as docas secas e assim permitir a saída dos navios para o mar. Belmira tenta socorre-lo, porque as lágrimas correm-lhe abundantemente cara abaixo. Mas ele, emocionado, diz-lhe, “não Belmira, homem que chora não é menos homem. Chorar de saudade alivia-nos a alma. Como o vosso tempo é escasso e não aceitareis almoçar connosco – que bem animado seria – deixem-me com breves notas sobre os ENVC. – Vamos a isso Caro Joaquim. Assim daremos, por terminado o nosso diálogo de hoje. – Pois, lá terá que ser. Digam, digam. E dissemos.
Os Estaleiros Navais foram fundados em junho de 1944 no âmbito do programa do Governo para a modernização da frota de pesca do largo. Em 1950, a Empresa H. PARRY & SON, LDA adquiriu a maioria das suas ações, com Jacques de Lacerda como Administrador-Delegado. Em 1957, passou também a ser explorada por esta empresa a Doca Eng. Duarte Pacheco, construída na área da Doca Comercial. Em tempos de dificuldades, em 1971, o Grupo CUF assumiu uma posição maioritária no capital dos ENVC, tendo elaborado um Plano Diretor de Desenvolvimento, cuja primeira fase foi praticamente concretizada. Mas, em 1975, a Empresa foi nacionalizada, passando a Pública, com um capital social de 330.000 contos. E agora vamos aos navios. Desde a sua fundação até 2013, data da concessão ao Grupo Martifer, os ENVC construíram para os seguintes mercados: De 1944 a 1974 cerca de 90% destinaram-se a armadores nacionais (incluindo as ex-colónias), sendo cerca de 50% destinadas ao reforço e substituição da frota pesqueira; Na 2ª metade da década de 70 e nos anos 80, o principal mercado da Empresa foi a Ex-URSS, para a qual foram produzida algumas grandes séries; Nos anos 90, os ENVC construíram, em boa parte, para o mercado Alemão; E, a partir de 2000, o mercado foi mais diversificado, estando incluída na sua carteira de encomendas a renovação da frota da Marinha Portuguesa.
– Muito bem estimados amigos. Deliciei-me a ouvir-vos. Na próxima semana aqui nos encontraremos. Tenham um bom fim de semana. Igualmente, amigo Joaquim.