O exercício do poder

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A. Lobo de Carvalho

De um modo geral, os políticos em funções importantes do Estado abraçam os seus poderes com entusiasmo, mas nem sempre pelas razões mais altruístas, já que são numerosas as ocorrências de abusos no exercício dos cargos públicos, algumas mesmo de bradar aos céus. Ilustram esta asserção alguns casos conhecidos, como os de autarcas que utilizaram dinheiros dos impostos de todos nós para alimentar vícios (passeios, prendas, casas de alterne, jantaradas e outras despesas suspeitas) e, ainda, governantes que também se deixaram corromper, recebendo quantias avultadas de dinheiro e outras benesses. O carácter de excelência dos políticos e de outros dirigentes públicos é uma qualidade intrínseca cada vez mais rara, a justificar, por isso, especiais atenções antes de qualquer nomeação.

Mas os abusadores de poder, sejam públicos ou privados, também se manifestam noutros campos, designadamente no desprezo com que tratam os seus pares e subalternos, exalando um narcisismo arrogante e bafiento, que muitas vezes descamba em terrorismo psicológico. Em alguns serviços públicos e forças de segurança parece ser mesmo um procedimento doutrinal, o que leva numerosos trabalhadores a ficarem de baixa médica, reduzindo-se deste modo a operacionalidade requerida nas missões a desempenhar.

É que o autoconvencimento de certos políticos e dirigentes – considerando-se elites intocáveis que encarnam ou incorporam a perfeição, mas sobretudo o poder que julgam absoluto –  torna-os hostis e intragáveis, gerando com frequência conflitos verbais, depressões e ansiedade, que não se desejam em qualquer circunstância, muito menos numa democracia digna deste nome. E isso existe entre nós, bastando ver, na TV, os plenários da Assembleia da República (AR), onde um banho de ética não faria mal a muitos dos que por lá navegam.

Quando vejo responsáveis políticos a salivar com tiradas como “quem se mete com o PS leva”, mostram logo o seu temperamento. Na AR, um órgão democrático por excelência, onde todos os eleitos têm voz, situações que não se adequam ao regime têm-se sucedido, deixando, evidentemente, reflexos negativos na opinião pública. Vindo este exemplo do topo, não se queixem os inquilinos da casa da democracia, assim como outros políticos, das críticas de que são ou podem vir a ser alvo por parte dos cidadãos.

A nossa AR é o forum onde está representado o povo português, nas pessoas dos deputados eleitos de diferentes partidos, que defendem as correntes de pensamento em que acreditam e onde todos podem e devem intervir. Sejam da extrema-esquerda ou da extrema-direita, a todos assiste o direito de expressarem as ideias que enformam os programas eleitorais com base nos quais foram eleitos, e penso que ninguém pode calar a voz de um deputado no exercício deste direito, goste ou não da temática em debate ou mesmo do orador e do conteúdo discursivo. 

Nada tenho que ver com o Partido Chega, mas o facto é que se apresentou ao eleitorado nas últimas eleições legislativas com um programa de acção política que obteve uma adesão para muitos inesperada, provocando enorme alvoroço e, até, escândalo nos restantes partidos, sobretudo naqueles das esquerdas que se julgavam donos da quinta. Com poucos anos de vida passou, de uma legislatura com um deputado apenas, para a seguinte, em que elegeu doze, tornando-se, justamente, o terceiro partido mais votado. Significa que é a voz de algumas centenas de milhares de portugueses que se revêem na sua ideologia, e esta realidade tem de ser respeitada em pé de igualdade com os restantes partidos. 

Ora o que acontece é que o senhor presidente da AR, um professor catedrático da sociologia, parece não entender as coisas assim, coartando com alguma frequência o direito de os deputados do Chega se expressarem conforme as propostas apresentadas ao eleitorado que os elegeu, considerando os discursos impróprios. Provavelmente, creio eu, esquecer-se-á de que existe um direito que se chama imunidade parlamentar, que confere aos deputados a liberdade de expressão sem terem de responder criminalmente pelos excessos de linguagem. Se um deputado é coartado na sua liberdade de expressão, no forum próprio, então que democracia é esta e para que serve a imunidade? 

Com todo o respeito que me merece a função que desempenha, e sendo a AR a casa da democracia onde se produzem as leis que orientam o nosso destino colectivo, não posso aceitar que o senhor presidente ameace, frequentemente, retirar o uso da palavra aos deputados do Chega. São deputados eleitos pelo povo que têm todo o direito e liberdade de expressarem as suas ideias. Já muitos outros deputados passaram pela AR, proferindo discursos impróprios, e não me lembro de serem ameaçados com o corte do uso da palavra.

O senhor presidente da AR não deveria vestir o uniforme de moralista, até porque a célebre frase “quem se mete com o PS leva” é de sua autoria, mas antes conduzir os trabalhos no respeito pela liberdade de expressão dos deputados. As propostas debatidas na AR são votadas e, do exercício do voto pelos deputados, resultam aprovadas ou rejeitadas, e é isso que conta. A extrema-direita não é um papão, sendo de evidenciar que só verá aprovada alguma proposta se uma maioria dos deputados lhe der apoio. Se assim é, porquê este autoritarismo de querer impor um ângulo de visão particular, para calar os deputados do Chega? 

Para esclarecer os que não me conhecem, devo referir que sou, com muito orgulho, militante de um grande partido fundador da democracia portuguesa, atento à vida política do meu país e do mundo, e nada me prende ao Partido Chega. Entendo, no entanto, que os seus deputados não só têm o direito de se expressar livremente, como esse partido deve ocupar uma das cadeiras da vice-presidência da AR, por ser o terceiro partido mais votado e ser uma saudável tradição parlamentar. Não creio que sofram de qualquer doença infectocontagiosa e, de resto, partidos da extrema-esquerda têm lá estado representados e não os reconheço mais contidos, mais saudáveis e menos radicais, se formos por este entendimento. Assim, os senhores deputados deveriam ser os primeiros a não criar divisões e alimentarem uma normalidade democrática, concordando com a atribuição, ao Partido Chega, de uma vice-presidência na AR. 

NOTA: Por indicação do autor, o texto segue a ortografia anterior ao novo acordo ortográfico.

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