A força de vontade

UM CONTO POR MÊS

Do romantismo ao realismo; da ficção à verdade…

Nasci numa freguesia encravada nos confortes da serra. Vivi duran­te parte da minha existência num ambiente duro, áspero, no conjunto com mais oito irmãos. Vim ao mundo numa localidade distante da sede do conce­lho e metida no cume da montanha, quase a perder-se no universo. Ali, tudo acabava. Até a estrada de terra batida cheia de buracos na época das chuvas, e carregada de poeira, ondulante, no Estio, chegava ao limite, frente a um morro. Depois, continuavam os montes imensos, nus, desertos, dando a aparência que o sol adormecia, cansado, no Inverno, face ao vento frio que arrastava o peso das nuvens. O caminho, que lhe chamavam estrada, íngreme, de ladeira em ladeira, cortava a serra. Os campos, ver­des e floridos na Primavera, secos no Verão, repousavam, cobertos de neve, na quadra invernosa. O rio, que corria apressado ou vagaroso, con­forme as estações do ano, mas sempre límpido e com trutas e enguias, na­quele tempo, dividia o vale, encoberto entre salgueiros e amieiros. A povoação, onde minha mãe me colocou no planeta Terra fazia parte de um aglomerado de casas edificadas com granito tosco e rodeadas, em socalco, de campos e vinhedos. O ruído das vozes, que o vento, em redor, criava, e onde a natureza também parecia nascer e acabar, nesse recanto, era, então, o fim de tudo. A estrada, aos ziguezagues, entre a serra, melhor dizendo, vereda de terra, era cinzenta como o tempo, que na maior parte das vezes ameaçava chover. E quando chovia… chovia, mesmo! No entanto, em princípio, era uma aldeia como tantas outras, com galinhas, cabras, porcos, coelhos, além dos bravos que vinham alimentar-se nos campos de cultivo, bem como outros animais domésticos, alguns deles que ajudavam nos trabalhos agrícolas. A existência de carreiros muito estreitos, on­de não podia passar qualquer espécie de carros e, ainda, das pessoas que sempre, ali, permaneceram, sem nunca verem o mar, mostrava a diferença.
A Páscoa e o Natal mereciam uma atenção especial e toda a gente se associava a comemorar, na igreja, o simbolismo de cada acontecimento. A igreja era pequenina, mais parecendo uma capela. O padre, que morava em baixo, descendo a encosta, na planície, vinha celebrar missa quinzenal­mente. No domingo de Páscoa havia almoço especial, com sopa de feijão branco onde era cozida toda a carne de porco e chouriços para lhe dar melhor paladar, juntando nabos e batatas cortadas em pequenos cubos, e couve galega, além do ensopado de borrego com ervilhas. No São João, construíamos a brincadeira de queimar “as barbas do Santo”, através de fogueiras. No Natal, fazíamos rabanadas de vinho tinto, bolinhos de ba­calhau, aletria, arroz doce, e bebíamos vinho adocicado aquecido numa chocolateira de barro, à noite, junto à lareira, onde ardiam, em labaredas, troncos de madeira, que além de produzir calor, faziam com que as pinhas dos pi­nheiros mansos saltassem, em volta, deixando cair os pinhões. Para a preparação da comida, nesse tempo, usavam-se potes ou panelas de ferro ou barro. O Presépio, erguido no adro da igreja, criava um ambiente de paz, alegria e amor. Aos domingos, quando no chovia, ao ar livre, ra­pazes e raparigas dançavam ao som da concertina. No pomar, as macieiras, os pessegueiros, as cerejeiras, as pereiras e as laranjeiras, bem como outras árvores frutíferas cresciam ao sabor da natureza. Podiam-se comer, os frutos até fartar, à dentada, pelos campos fora. A hortelã, o fun­cho, a erva cidreira, em conjunto com os coentros e a salsa, desenvolvi­am-se, à vontade do tempo, nuns toscos canteiros de pedra, junto a um cancelo que dava entrada para a horta. Faziam-se compotas, além da marmelada, de variados frutos. As ervas aromáticas, que se conservavam, to­do o ano, misturadas com mel fabricado pelas abelhas em cortiços colo­cados em cima de penedos, serviam para preparar receitas destinadas a remédios caseiros. No fim das colheitas, em Setembro, festejava-se o S. Miguel e comia-se o mel, agora, num prato de barro vidrado, conjunta­mente com broa de milho amarelo cozido no forno comunitário da aldeia aquecido a lenha. O milho transformava-se em farinha, ao ser esmagado entre duas mós, sobrepostas, no moinho movido a água, que cada residente tinha um dia da semana para o poder utilizar. A escola só existia numa freguesia, situada no sopé da encosta, que percorria, a pé, cerca de uma hora de caminho, declive abaixo, declive acima, todos os dias úteis da semana, e, nessa altura, também ao sábado, debaixo do frio, da chuva, da ventania ou do sol, conforme a predisposição do clima. O cão, o “bolinhas”, alojado junto a um alpendre, com a coleira presa a um arame sus­penso entre pontas, que lhe permitia movimentar-se, escondia-se, para dormir, ou fugir às perturbações atmosféricas, na base de uma meda de palha. Era enérgico. Quando ladrava chamava a atenção dos passarinhos, que fugiam, voando, assustados.
De vez em quando aparecia uma mulher na povoação, tocando uma corneta para chamar as gentes e com um cesto à cabeça, a vender sardinhas e chicharros. A minha mãe comprava e colocava o peixe, depois de preparado, em salmoura, num cântaro de barro, para comer, mais tarde, cozido com batatas, cebolas e couves, ou nabiças do cultivo da horta.
Aos onze anos completei o que se chamava, no meu tempo, a instrução primária. Passei, sem dificuldade, no exame da quarta classe. Os meus pais festejaram o evento com um jantar de cabrito assado num grande tabuleiro, no forno comunitário, acompanhado de batatas e cebolas provenientes das nossas leiras, bem regado com azeite e outros temperos caseiros. A transformação da azeitona, em azeite, realizava-se num lagar, situado junto ao rio, que se movimentava através de um sistema hidráulico, face à implantação de um açude. O lagareiro cobrava a sua maquia.
Tudo se modificou, agora, com o decorrer dos anos. A estrada de terra batida passou a asfaltada, cortando as montanhas, o que veio a aproximar, sem dúvida, as povoações. A electricidade aboliu os candeeiros a petróleo, o lampião e as candeias de azeite, bem como as velas de cera ou sebo, tornando mais claro o ambiente. Os transportes públicos, diariamente, passaram a assegurar a movimentação das pessoas. O aspecto urbanístico transformou-se. Mas a visão dos tempos idos ficará, para sempre, na minha mente, focando a alegria primaveril, nos campos a renascerem, dos vinhedos que dão o saboroso vinho e das outras árvores frutíferas a abrirem-se, em flor, para, mais tarde, como por milagre, saciarem a fome e a sede.

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Até aos quinze anos trabalhei no campo. Depois, o meu padrinho de baptismo, que era sargento da Guarda Nacional Republicana e vivia na cidade, devido a não ter filhos, veio buscar-me, para ajudar a mulher nas lides caseiras.
Estudei, à noite, na escola pública secundária. Completei o quinto ano comercial com sucesso. Sempre gostei de ler. Tive uma professora de português que me incentivou para a leitura. Passei a conhecer, agora, na minha existência da puberdade, os nossos escritores clássicos, como Camilo, Eça de Queirós, que me apaixonei pelo romance “A Cidade e as Serras”, saboreando, em espírito, o arroz de favas, bem como Alexandre Herculano, Antero de Quental, Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis e outros, nos quais fica incluído Luís de Camões, como não podia deixar de ser, tendo feito parte de um coro onde cantávamos os “Lusíadas”.
Nesse andar temporal tentei arranjar emprego. Gostava, quando ia ao barbeiro admirar a maneira como o profissional manejava a tesoura e a navalha. O meu padrinho envelheceu e reformou-se. A minha madrinha adoptiva, partiu, primeiro, para o Além, devido a uma doença degenerati­va. O marido, a seguir, viveu pouco e foi fazer-lhe companhia. Fui o único herdeiro, constando, no testamento, entre outros valores, a moradia que possuíam numa artéria da cidade. Que fazer? – Pensei muito. Segui a minha inclinação. Adaptei o rés-do-chão da habitação a um salão de cabeleireiro, no qual instalei todos os requisitos para o bem estar dos clientes.
Por aqui fico e ficarei, na companhia da família que fui constru­indo, até que a morte me venha buscar.

Nota: – Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

(Imagem: “revistagloborural.globo.com”)

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