A lendária Serra de Arga

A Serra de Arga, que é ameaçada, no presente, pela prospecção de lítio e outros minerais, a montanha dos remotos aborígenes, ergue a sua solitária imponência próximo das margens do bonançoso rio lima, situando-se na periferia da cidade de Viana do Castelo. É um dos cumes mais curiosos do Alto Minho, quer pelos seus aspectos orográfico e panorâmico, quer pelo seu passado de história e de legendas, tendo uma vivência de milénios anteriores à fundação da nacionalidade. Esteve muitíssimos anos entregue aos seus recursos naturais, às suas lendas e às suas tradições. Era um logradouro de montanheses, de pastores, de carvoeiros, de criminosos e até doentes, que a sociedade repelia. Entre os declives e fraguedos da serrania refugiavam-se monges e anacoretas, coitavam-se delinquentes fugidos à justiça, e descansavam, na sua solidão imposta, os leprosos. Atraiu a atenção dos romanos, que a investiram, para darem caça aos lusitanos foragidos da Serra da Estrela e nela refugiados.

Nos dias de hoje, todos estes circunstancialismos da orognosia vieram, de forma acentuada, a modificar-se. Com a construção de estradas abriu-se à civilização e ao turismo. Passou a ter valor económico após a implantação do Parque florestal de São Lourenço da Montaria. Situa-se na pitoresca aldeia vianense, que lhe fica no sopé, onde se cultivam vários espécimes vegetais, a maior parte destinado à arborização, mais o afamado salpicão e as características chouriças sanguinhas com cebola, tudo na base da carne porcina e dos seus derivados.

A montanha, com o decorrer do tempo, passou a ser policiada. Construiu-se, no seu cume, uma capela e um cruzeiro monumental, que uma estrada aos zigue-zagues nos transporta até esse local que nos prende a atenção com o seu deslumbramento de paisagem. Deixou de ser um local ermo, escalvado e bravio, ancoradouro seguro de penitentes, erimitas e salteadores, tornando-se numa área aprazível, sombreada e povoada.

O saudoso Dr. José Crespo, médico, escritor e cientista, com dois dos seus livros — “O Minho, Região de Beleza Eterna” e “Medicina e Literatura” — ambos com as edições esgotadas, focam o estudo e várias das suas curiosidades naturais, etnográficas e antropológicas, que serviram de ensaio para a preparação desta história. Ensina o cientista que o povo criou, ali, os seus santos. Santo Anginha, que fora o mais célebre bandoleiro da serra, além de Santa Justa e São João de Arga. Todos com as suas histórias e lendas, os seus rosários de penitências, os seus chorrilhos de milagres. Até se lhes apontam práticas de magia. Há ainda outro santo, pouco conhecido fora do âmbito restrito da serra, que ali o vulgo designa pitoresca e irreverentemente, por “Santo do Chocalho”. É uma imagem tosca, vestida de estremenha, de pedra pintada de vermelho, muito antiga, com uma expressão de doloroso ascetismo no rosto. Foi-lhe erguida uma rústica capela, onde agora se venera. É a capelinha de São Paio Eremita, também conhecido por “Santinho do Alto” e por Santo Antão. Na mão esquerda tem o bordão e um rosário de bogalhos. Do pulso, também esquerdo, pende-lhe um enorme chocalho. Segundo os estudos desenvolvidos, o chocalho do Santo só podia relacionar-se em sinalizar a presença de leprosos, que os houve pelas fragas da serra. Criaram este santo da sua devoção, a quem exprimiam os seus sentimentos religiosos, visto ser-lhe vedado aproximarem-se de outros santos existentes que pertenciam ao custo geral.

 

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O mês de Agosto chegou, mais uma vez, no calendário cadente da vida. O calor na cidade apertava. Os afastamentos humanos impunham-se, devido à nefasta pandemia. Resolvi concretizar aquilo que a minha mente há muito congeminava. Fui passar uns dias à Serra de Arga, acampando. Montei tenda, mesmo no alto da montanha, nas proximidades da capela da Senhora do Minho, respeitando o espaço físico das antenas oficiais.

O local é paradisíaco. Divisam-se recantos idílicos, jardins floridos de espécies silvestres, cavalos selvagens, lebres, raposas e coelhos bravos a saltarem à nossa frente, além de lobos pacíficos, juntamente com outra bicharada, todos a contribuírem para o equilíbrio do ecossistema. Destacam-se sombras aconchegadoras, fontes marulhantes, aliado a poéticos poentes, muito ao longe, em sanguíneas estrias sobre as águas romançosas do Lima, conjugado com refulgências lunares nas noites estreladas de Agosto. Nessas noites, quando o grande balão surge no céu, o ambiente que nos rodeia enche-se de magia, criando um sortilégio que paira desde os píncaros longínquos, envolvendo todo o cenário sertanejo até às águas sussurrantes dos riachos e ribeiros, que correm, apressados entre penhascos, a caminho das levadas. A luz, como um caleidoscópio mágico, joga os mais inesperados efeitos de cor numa harmoniosa melodia, na qual se conjugam os sons emitidos pelo vento, através da floresta, formando um eco melancólico que vinha até mim, em uníssono, promovendo uma contemplação íntima, atenta a sua paisagem introspectiva. Tudo é colorido, parecendo um arco-íris, debaixo de um céu azul, transparente e acolhedor.

Neste cenário conjuntural e harmonioso do verde e do azul, manchado com outras pintas de diversas cores, sobressai o casario distante no fundo do vale que, do alto, mais do que moradias de pessoas, parecem janelas abertas na própria paisagem. Destacam-se, mais ao longe, quintas solarengas, palacetes medievais, cruzeiros, eiras e espigueiros, por entre manchas de verdura e vinhedos, a envolverem fortes aglomerados populacionais. Ao amanhecer é o milagre! Todos os dias surgia um prodígio sobrenatural de luz sobre a terra, ao nascer do sol na Serra de Arga.

Os dias do mês de Agosto sucediam-se com alegria, num descanso de corpo e de espírito, afastado de todas as convulsões humanas naquele ambiente de magia e sonho. Tinha esquecido a maldita doença que ataca todos de forma indiscriminável, o famigerado Covid-19. Ali, não era necessário caminhar de máscara.

Uma noite, já alta, de sábado, acordei perante a quietude do recinto. O vento parecia descansar. Os grilos tinham deixado o som estridente da sua cantoria, bem como o coaxar dos batráquios nos ribeiros. As estrelas cintilavam com mais brilho. Muito ao longe ouviam-se foguetes a estoirarem na abóboda celeste. Subi ao ponto mais alto da serra a fim de admirar o espectáculo, e em simultâneo, intrigado com tal acontecimento que a vista retinha com satisfação. O fogo aparecia no céu nas mais variadas formas e cores, doando à paisagem efeitos indescritíveis de beleza e arte. Pensando, veio-me à memória a causa desta visão!

– Bolas! Que esquecido estou… imperdoável! – Festejava-se a Romaria da Senhora d´Agonia, através dos meios digitais de comunicação. Estava a assinalar-se um dos momentos mais altos da sua programação.

 

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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