Sempre foram um fascínio, para mim, as viagens. A literatura de viagens, essa, terá um particular encanto enquanto tempo de preparação. Não me imagino a emigrar, não me imagino a viajar sem o prazer de o fazer. Não me imagino a viajar para fugir de uma guerra ou calamidade não controlável.
Às 5h da manhã, hora a que começo a escrever este artigo, existe um silêncio no ar e uma complexidade do tempo que não está atribuído a nada, apenas roubado ao sono, e uma luz indefinida.
Penso nesta liberdade de acordar a qualquer hora, e deambular pela casa, ler, escrever, ou simplesmente olhar a noite.
Penso nos milhares de migrantes, que fogem da guerra, a quem este momento “do nada”, é roubado. Penso que, ser migrante, pode representar um “desracionalizar” que se cola à pele tirando o sentido a tudo. Penso que ninguém, quer ser, ou pertencer, a isto.
Viajar deveria trazer o sentido duma demanda geográfica, de um tempo e imaginário interior. Nunca, viajar, poderia ser, um perder de identidade, e de controle sobre a própria vida.
Literatura, medicina migrações, adquirem assim um tempo de reflexão.
Falar de literatura e médicos é como falar de um cientista e das suas intuições, que, antes de serem demonstradas, não passam de incursões pelo percecionado.
O médico, necessita, maioritariamente, desta outra dimensão criativa, das histórias e de seus personagens, para que a vida real, do sofrimento, e da cura, ganhe consistência, e rosto, e possa existir para além da morte e da sua inevitabilidade. Quando escreve fá-lo pelas mais variadas razões. Mas sendo médico, tem acesso privilegiado a informação sobre o ser humano, que, para outros, só pode ser pressuposta ou imaginada. Medicina e literatura caminham lado a lado.
Voltamos a literatura migrações e viagens. Percorremos estes conceitos que nos propõe. Vivemos num mundo intemporal. O tempo joga com cada um de nós. Importa resistir.
A arte e a literatura são, muitas vezes, o que nos salva.
Talvez o mundo real, ao contrário do que se espera, seja mesmo isto, o mundo das ideias. Ideias e realidade confundem-se assim.
Os médicos impactuam o sofrimento de outros, e atuam. É o que gostam de fazer – “um papel de Deus” – mesmo sem acreditarem na sua existência. Concorrer com Deus, mesmo que acreditem que ele é tão poderoso que vence no fim. “Salvar vidas”. O altruísmo é enorme, mas talvez este contenha uma necessidade de confrontação da própria fragilidade. Os médicos escolheram este papel da ciência e da humanização.
Que maior poesia pode conter?
Que surjam tantos escritores, e artistas, entre médicos, não espanta tanto assim. O médico é artista em cada momento da sua profissão, criando e recriando o mundo para além do corpo. Que de vez em quando escrevam sobre isto, esculpam, pintem, poetizem, parece até o mais lógico que pode acontecer.
Luísa Quintela
Médica Psiquiatra/Presidente do CCAM