Localizada num pequeno largo, frente à antiga Fábrica do Sordo, equidistante do Souto de Santa Marta e do centro cívico da freguesia, está a “Mercearia Andorinha”, que tem por ‘respeitável’ vizinho um concorrente de peso. Não vamos especular e, muito menos, debruçarmo-nos sobre a problemática da sobrevivência do chamado comércio tradicional perante a proliferação das grandes superfícies. Essa questão apenas nos alimenta a curiosidade em saber onde estará o segredo da resistência desta unidade, em concreto. Ela é gerida pelo senhor Carlos Andorinha, na companhia de sua esposa, Maria da Conceição. “É dos livros” que o atendimento personalizado e o elemento da proximidade em muito contribuem para a sobrevivência dos pequenos comércios, mas não basta.
A verdade é que o senhor Andorinha é uma amálgama de todos os atributos que aquela modalidade encerra: afabilidade, amabilidade, franqueza, lhaneza, modéstia, seriedade, simpatia, simplicidade, e muito mais. Isso até será comum à generalidade dos seus congéneres, mas ele junta-lhes outro atributo que, sem desmerecer dos demais, é muito importante: destemido lutador, que sabe enfrentar toda a espécie de dificuldades, sempre com um sorriso de esperança para partilhar.
Demonstra-o a sua história pessoal. O senhor Carlos nasceu em 1937, em Santa Marta de Portuzelo. Terminou a antiga quarta-classe antes de fazer 11 anos e, passados oito dias, estava a trabalhar, como empregado do sacristão de Santa Luzia, que tinha um pequeno anexo onde se serviam, sobretudo, ‘malgas de caldo’ e tijelas de vinho, aos empregados das obras da escadaria, frente ao templo, da responsabilidade do saudoso mestre Albino ‘Grelo’. Seguiram-se alguns meses como ‘marçano’ de Manuel Justino Patusco e sete anos a trabalhar na mercearia Dario, onde é hoje o Café Cancelo, que integra a ‘Tasca do Morte’. Ainda fez a experiência de funcionário da Soleite, no ex-Grémio da Lavoura, durante nove meses.
Determinado, partiu para Moçambique, findava o verão de 1959. Com empréstimo do Sr. Patusco (20000 escudos), rumou a Lourenço Marques. Aí trabalhou, durante três anos, na Sapataria Lorde (ao que consta, a melhor da capital), gerida pela sociedade Costa & Neto.
Com pouco mais de três meses de casa, vê compensada a sua abnegação pelo trabalho. Antes do Natal de 1959, ao verificar que lhe pagavam o salário a dobrar, 7000 escudos, alertou a entidade patronal, que lhe disse tratar-se de um ‘bónus’ de boas festas. Porém, nova surpresa o esperava no fim do ano, quando lhe deram outro salário e, logo aí, liquidou metade da dívida ao Sr. Patusco. Passados três anos, decide estabelecer-se por conta própria. A Lorde tenta-o com o convite à participação na sociedade mas, temerário, foi para a Avenida de Angola, nos subúrbios de Lourenço Marques, onde assumiu a exploração de uma cantina, com mercearia.
Como a mercearia era fraca, com incentivo e ajuda financeira de Casimiro Augusto (de Mazarefes), decide-se por obras de remodelação, criando a Mercearia Andorinha e o Bar Eusébio (nome maior do futebol nos anos 60, que nascera na casa em frente). O negócio prosperava, ao ponto de adquirir uma vivenda na paradisíaca Ponta do Ouro, perto da África do Sul, 120 kms a sul de Lourenço Marques.
Construía amizades sólidas, com compatriotas e nativos, num ambiente em que, paralelamente ao comércio, imperava o consumo de cerveja e frango.
Por lá passou António Camelo alguns fins de semana, enquanto a sua companhia se instalara na Namaacha, vinda do teatro da guerra, em Tete, aguardando ordens para regressar à Metrópole.
Entretanto, após a Revolução dos Cravos, vieram as convulsões, antes e após a independência. Atitudes incontroláveis, desvarios e destruições, por parte de grupos em desmando, conjugavam bem com a impreparação para a liberdade.
Na Avenida de Angola, o seu estabelecimento foi o único que manteve os vidros de portas e janelas intactos. Todos os outros prédios foram vandalizados e na sua maioria incendiados. Ali, a amizade dos residentes, todos negros, impôs-se, inclusive numa outra tentativa, esta noturna. Ao sentir uma machadada numa porta, foi alojar-se na residência do casal Carlos Capa e Rosa Sordo (já saudade). No regresso, para seu espanto, a casa estava intacta. A vizinhança, ao ouvir o barulho, saíra à rua e, mais uma vez, não permitiu qualquer destruição. Mas os gestos provocatórios sucediam-se por todo o lado, criando um clima de insegurança e medo. Foi após uma ação dessas que o Carlos Andorinha se decidiu a apostar na certeza da vida. Com ajuda cúmplice, escondeu-se num barco e desembarcou, em Durban, na África do Sul. Trazia consigo, apenas, a roupa do corpo. Para trás a luta, os amigos, os bens, o sonho.
No consulado português garantem-lhe passagem na TAP para Lisboa, onde o IARN lhe faculta a vinda para Viana do Castelo, dando-lhe 2500 escudos.
De regresso à terra natal, nova luta em vida nova, e eis-nos na “Mercearia Andorinha”, que antes fora “Joaquina”. Os frangos tornam a cruzar-se na sua vida, pois foi na venda dos ditos que conheceu e se enamorou da Maria da Conceição, com quem se casou ainda a tempo de serem ambos muito felizes, junto das filhas Inês (farmacêutica), Maria Cristina (dentista) e Maria João (advogada).
Congratulamo-nos com todos quantos superam as contrariedades que a vida coloca, com mais ou menos intensidade. A determinação do senhor Carlos Andorinha bem merece que seja feliz. E parte disso está em todos nós, como amigos e consumidores.
Parlamento Europeu
A presidente da Mesa da Assembleia de Freguesia, Maria Alice Antunes, integra a lista de candidatos a deputados ao Parlamento Europeu, em honroso 14º lugar, numa candidatura partidária.
É motivo de orgulho para Santa Marta e uma oportunidade para a Maria Alice, licenciada em Ciências Sociais como formação académica, ganhar entusiasmo e empenhar-se ainda mais pelas causas que a ocupam e preocupam.
Parabéns.