O lunático

O Tito Nápoles, homem carregado de cultura, aliado a manias, era uma pessoa de ar extravagante, que usava barbas compridas e mal tratadas a dar um aspecto de excentricidade, conjugado com um nome pouco vulgar. Nas expressões e gestos que empregava, alguns entendiam que tinha fugido do manicómio e outros ficavam espantados com a sua maneira de falar e com o conteúdo da sua argumentação, embora por vezes incoerente.

Só distinguimos as coisas que se prendem a nós. A humanidade, agora, já não tem tempo para conhecer seja o que for. — dizia, continuando. — Compram-se os objectos construídos nos vendedores do tempo. Mas como não há vendedores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queremos um, temos de ser nós próprios.

Realmente, na ideia dele, a gente vive como se estivesse a construir uma morada definitiva na Terra. Tudo gira em torno de preocupações materiais. Para o espírito, o tempo é cada vez mais escasso. Agimos como se o nosso planeta fosse eterno. Deparamos com imensas oportunidades de realização e, por isso, deixamos de nos preocupar, sem dúvida, das verdades sobrenaturais. Que terríveis enganos serão aqueles que nos fazem esquecer a transitoriedade efémera da nossa jornada? Cada um pensa à sua maneira. Se calhar, não pensa! Mas os que reflectem, porventura, o coração diz-lhes que existe um lugar, maravilhoso lugar para onde todos se encaminham. Não sabemos dimensioná-lo, descrevê-lo, mas o coração, em certos momentos, ilumina essa via, que com toda a certeza deve existir. Portanto, o coração vê mais longe que os olhos. Vê no tempo a eternidade.

No café, entre os amigos, ou melhor, entre os curiosos que se sentavam à sua volta, usando fraseologia desconexa, comentava: — As pessoas grandes são mesmo muito esquisitas — pausava, com um leve sorriso, mostrando uns dentes amarelados pelo tabaco — complicam tudo! É verdade, o mundo está cheio de pessoas grandes que complicam o que é fácil, isto é, dificultam e atrofiam o valor mais sublime que existe entre os homens — nova pausa, a sorrir, abertamente, e com alguns gestos de mãos — a amizade! Afinal de contas — continuava — o que é que as pessoa querem? Pretendem viver no vazio da existência? Querem construir algo? Ou querem continuar a alimentar-se das coisas fáceis e dos prazeres desregrados que a vida nos oferece todos os dias?

Mudava com muita frequência o teor da linguagem, contrastando, até, em parte, com os anteriores pontos de vista, prosseguindo:

Ninguém é obrigado a ser amigo de ninguém. As pessoas são livres de fazerem as suas escolhas, consoante os seus desejos, no que diz respeito à amizade, embora seja duro caminhar sozinho.

Principiou a escrever um livro, que nunca acabou. No entanto, repisava, com frequência, palavreado bombástico, que dizia fazerem parte dessa publicação.

Certas criaturas são mesmo ingénuas! Não sabem, sozinhas, enfrentar a vida. Vivemos alheios à suas necessidades, fazendo como quem não vê. Passamos ao largo, para tentar desconhecer os motivos da mão que se estende e do olhar que suplica. Somos todos eternamente responsáveis. Há gente que está a ser explorada, porque não possui meios para se defender. Há população que está a ser pisada, porque as miséria já não lhe permite levantar a voz. — Depois, perguntava — O que fazemos diante de tudo isto? — a resposta não vinha. Surgiam outras frases altruístas. — como é triste a solidão de alguns, sem que ninguém se lembre de ser presença junto deles!

Terminava, quase sempre, as suas deambulações com esta expressão:

— Se a todos devo a minha atenção, muito mais devo o meu amor àqueles que um dia cativei. Deles sou, ainda, mais responsável.

L     l     l

O lunático Tito Nápoles morreu cedo, na mocidade dos quarenta anos. Andou a estudar no Seminário, abandonando, quase padre, a sua primeira vocação. Ingressou, depois, na faculdade, e formou-se num curso de letras. Dedicou-se ao ensino. Foi um professor polémico. No decorrer das suas leccionações ficou, sempre, aquém dos padrões vulgares dos costumes e da moralidade. Os alunos andavam à volta dele, mais devido às excentricidades que mostrava, do que propriamente face ao porte que seguia e grau de conhecimento manifestados. Falava em catadupas, entre sufixos e prefixos.

Na puberdade viveu durante algum tempo na casa dos seus tios maternos. A prima Esmeralda, que conservava presente na memória, mais velha do que ele e que fizeram certas brincadeiras era uma apaixonada pelo espiritismo. Quando permaneciam nesses tais divertimentos, nos cantos mais escuros e escondidos da casa, no palheiro ou no sótão, falava-lhe dos poderes extraordinários da mente.

­- Se queres estar em contacto com uma pessoa que está longe – afirmava – tens de pegar numa fotografia dela, fazer uma cruz, dando três passos, e depois dizer “estou aqui” – defendia a moça, que assim poderia comunicar, telepaticamente, com a personagem desejada.

A prima Esmeralda casou. O Tito Nápoles ficou solteiro. Afastaram-se. Cada um seguiu o seu destino. Quando a queria recordar, usava o truque que ela lhe ensinou. Mas a imagem era sempre tão frívola, que nunca chegou a ver a expressão dos seus olhos. Seria feliz no caminhar da vida? Era isso o que mais lhe interessava saber, mas que em tempo algum veio a ser esclarecido.

Pouco a pouco, a força empolgante da sua mocidade foi desaparecendo, aliado ao sentimento de alegria que o tinha acompanhado nestas etapas do viver. Alegria e felicidade, que palavras tão lindas e tão difíceis de encarar! Alegria era aquilo de que tinha mais saudade. Claro que, à sua maneira, fazia por ser feliz. Leu, algures, que a felicidade está para a alegria como uma lâmpada eléctrica está para o sol. A felicidade tem sempre um objectivo. Somos felizes por alguma coisa. É um sentimento cuja existência depende do exterior. A alegria, pelo contrário, não possui propósito. Surge sem qualquer razão aparente. Assemelha-se ao sol, pois arde graças à combustão do coração de cada um.

Conheceu, mais tarde, no decorrer de um colóquio, uma mulher que o atraiu, visto ter fundado uma associação de feministas. Reconhecia haver bastantes aspectos certos naquilo que ela defendia, mas também existiam muitos exageros, muitos juízes falsos e distorcidos da realidade. Era neste conjunto de verdadeiras e erradas ideias que encontrava o fascínio do interesse desta aliança. Defendia a tese de que as mulheres eram totalmente donas do seu corpo. Fazer, ou não, filhos, dependia somente delas. O homem não era mais do que uma necessidade biológica, e como tal era usado. Este conceito encontrava reforço no mundo animal. As fêmeas só se encontravam com os machos na altura de acasalar. Depois, cada qual seguia o seu caminho. Os filhotes ficavam com a mãe.

Como não era capaz de entender se tudo aquilo era verdade ou mentira, acabou por deixar aquela união de facto. Sabia, no entanto, que era um ser humano, e que cada um nasce com um rosto diferente de todos os outros, e esse rosto é o que preservamos durante toda a vida.

Quando faleceu, partiu pensando nas árvores, antevendo a forma como elas crescem no mais variado contexto da sua tipologia. Lembrava-se, na sua meninice, do seu pai dizer que uma árvore com muita ramagem e pouca raiz pode ser derrubada à primeira rajada de vento forte. Ao testamenteiro deixou o encargo de lhe ser plantada uma japoneira na sepultura térrea e rasa para que tivesse flores na outra galáxia, além de sombra, nos dias de forte estiagem.

 

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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