É curiosa a forma como por cá se continua a olhar para o futebol. Sabe-se que o país que adora o fenómeno e idolatra quem o protagoniza, é o mesmo que se desfaz em juízos preconcebidos acerca das figuras principais: os atletas. Os fundamentos e as histórias não são recentes. Prevalecem há décadas, também por culpa dos próprios. Ainda hoje estereotipamos. Talvez não achincalhemos como dantes, mas troçamos do discurso redondo e aquém da imaginação demonstrada num terreno de jogo. Criamos generalizações acerca das vidas faustosas e libertas de compromissos morais.
Mas os tempos e o futebol mudam. Assim como nós e os nossos preconceitos.
Embora não o saiba e provavelmente nem o deseje, João Vasco Miranda é um dos que encarna a transformação. Filho do Salvador que hoje preside à Associação Desportiva Darquense, neto do Salvador (pai) que outrora o treinou, o João, que um dia veio de baixo e conseguiu vincular-se ao primodivisionário Tondela e é hoje destaque no Varzim – já lá iremos -terá acedido, em março de 2018, ao melhor dos dois mundos em que sempre se moveu.
Alcançou a proeza inicial quando, à altura, atuava na Segunda Liga, pelo Gil Vicente, marcando, em pleno Seixal, o golo da vitória frente ao Benfica ‘B’ de Ferro, Florentino Luís, Gedson Fernandes e João Félix. Dias depois, nada tomado por uma soberba que, a suceder, não seria reprovada, o João definiu-se academicamente. A dissertação da sua autoria, “Futebol e Saúde Óssea. Estudo comparativo entre futebolistas masculinos adultos e atletas de outras modalidades”, valeria 19 valores e a obtenção do grau de Mestre em Treino Desportivo para Crianças e Jovens.
Seguiram-se anos de consistência e regularidade. Ainda contratualmente ligado ao Tondela, foi cedido ao Benfica de Castelo Branco, em 2018/2019. Mesmo sem atingir a subida de divisão, foi melhor marcador da equipa e figura principal, ao ponto de ser eleito o melhor jogador do Campeonato de Portugal. Talvez a deceção de uma carreira tenha chegado meses depois, atentando ao que confessou em entrevista concedida em abril de 2020: “…quando me preparava para ser aposta no Tondela e depois de uma pré-época muito boa, de um dia para o outro, as coisas mudaram e notei que o projeto do clube não coincidia com o meu. O futebol é um negócio e somos peças desse mesmo negócio…”.
As declarações agora reproduzidas datam de uma época que tanto teve de feliz como de inglória. Só a COVID-19 e o conjunto de decisões administrativas que se sucederam estancaram o andamento do João e do ‘seu’ Olhanense, que percorriam alegremente um caminho aparentemente desbravado rumo a patamares maiores. Pelos golos, assistências e influência direta no rendimento da equipa, o darquense seria escalado, pelo portal especializado zerozero.pt, para a Equipa do Ano da Série D daquele Campeonato de Portugal. Do 11 fariam parte companheiros de grupo de trabalho, como Sapara e Leonardo Lelo, hoje em ação na Liga principal.
As portas da II Liga abrir-se-iam, todavia, já que desperto para os feitos de João Vasco estava o também histórico Académico de Viseu, ‘poiso’ das duas últimas temporadas. Nunca deixou de ser aposta, apesar das múltiplas trocas de equipas técnicas e da inconstância exibicional do coletivo.
Hoje, e desde outubro último, o João está bem mais próximo de casa e das raízes que sempre lembrou e às quais pondera retornar: “Espero acabar a carreira a jogar no Darquense, nem que seja nos veteranos”, garantia em 2020. Peça de um projeto ambicioso que almeja as divisões superiores, vai atuando entre as alas e o apoio direto ao homem mais avançado do Varzim Sport Club. Conquistou espaço e foi dos que melhor se apresentou na passada semana, diante do Sport Lisboa e Benfica.
Sem tremedeiras, com aparente descontração e alegria, pareceu aproveitar para fazer do jogo dos Oitavos de Final de Taça de Portugal um regresso aos momentos de uma meninice em que, de cabelos loiros ao vento, desejava apenas fintar, correr e marcar mais do que os restantes.