Um Conto por mês | Do romantismo ao realismo; da ficção à verdade…

A mentira e a verdade

O Rafael e o Pedro, amigos de longa data mais propriamente dos bancos da escola, que não obstante as mutuações dos tempos, feitios, hábitos e conhecimentos adquiridos, souberam, sempre, manter a afeição obtida na época de criança. Um emigrou. O outro ficou pela sua aldeia pitoresca e alegre, dividida por um riacho, ladeado de salgueiros e ami­eiros, que as trutas fugiram com a poluição e aquela água límpida e cristalina que, no Verão, se tomava banho, passou a uma cor escura e, por vezes, mal cheirosa. Lamentava, com o sucedido, a maioria da população. Mas a ganância de alguns e a deficiente falta de fiscalização, que atri­buíram ao Presidente da Junta, pelo facto de ter montado uma fábrica de curtumes com os despejos ligados para aquele braço de água, que veio a perder as eleições seguintes, foi a razão do sucedido ao ribeiro; e até as árvores, a jusante, acabaram por não resistir a toda aquela corrosão.
De vez em quando, o Rafael, principalmente no mês de Agosto, re­gressava à sua “terrinha”, como lhe chamava, para passar uma férias, numa airosa e cativante moradia que construiu no sopé da colina e colocar, também, a conversa em ordem. Aproveitava para saborear a boa comida ca­seira, que a mãe, ainda viva, esmerava-se na preparação.
Os dois amigos gostavam de contar histórias, inventadas a preceito, quando se encontravam no café da aldeia, ao apreciarem, com gosto, o vinho verde da região a subir no vidrado da malga, no conjunto com um chouriço de carne assado na brasa ou umas pataniscas, envolvendo, no pre­parado, muito bacalhau e salsa picada, além de moelas e iscas de fígado de porco de cebolada, tudo acompanhado de boroa de milho amarelo fabri­cada, no burgo, em fornos rústicos aquecidos a lenha.
Narrava, alegremente, um deles:
— Certa vez, ouvi uma patranha sobre uma partida de xadrez disputada num tempo em que o transporte de longa distância de coisas e pessoas era feito, exclusivamente, pelo mar. A parte de um lado registava a sua jo­gada num papel, que mandava pela próxima embarcação. Aguardava, durante meses, o retorno. A partida demorou anos e não foi finalizada. Antes, uma das partes veio a falecer. O que sobreviveu declarou vitória, que anunciou, através de éditos. A sua versão acabou por ficar como verdadei­ra. Não existe registo da causa da morte do perdedor. Há quem diga que foi tédio, se é que isto pode estar incluído nas causas oficiais que levaram o sujeito a “bater as botas”.
O outro ria. Passou, então, a contar a sua versão:
— Também ouvi outra mentira relacionada com um clube de futebol que foi jogar fora do país. A ruim captação do jogo fazia-se através das on­das do rádio. Ainda não havia a televisão. O grupo visitante começou a sofrer golos sem marcar nenhum. O locutor da emissora que acompanhou a delegação, quando viu que o placar caminhava para uma goleada passou a transformar os tentos da equipa adversária em golos dos seus jogado­res. Para os de cá a partida terminou empatada. O facto só foi desco­berto um tempo passado, porque, alguém que estava nessa cidade trouxe um jornal de lá a mostrar o clamoroso vexame.

*     *     *

As duas historietas mostram, de forma inequívoca, que o ser humano, com a mania de querer descobrir o que existe do outro lado da ima­ginação, ainda, de querer encontrar o pote de ouro no final do arco-íris, ou, então, de ter inventado essas coisas modernas, como seja, aviões, satélites, internet, por exemplo, é, sem lugar de dúvida, o culpado por tudo de ruim que acontece no planeta Terra. É uma questão
óbvia. Senão, vejamos. Caso não houvesse aviões, também não teríamos passagens aéreas. E se estas não existissem, parlamentares e membros do Governo, tudo corrobado pelo Presidente da República, não gastariam
o dinheiro dos nossos impostos com as viagens mundo afora e seriam pou­pados, evidentemente, dos seus casos poderem vir a ser explorados pe­los meios de comunicação de massas.
O ser humano é, sempre, o culpado de tudo. Foi inventada a cueca. Quem a mandou inventar em substituição das ceroulas? O homem! Se esta peça de roupa não tivesse aparecido, no Inverno as pernas dos masculi­nos conservavam-se mais quentes e aconchegadas. Faz sentido afirmar que, porventura, se vivêssemos num sistema de escambo, sem a circulação da moeda, seríamos poupados a ver cenas bastante constrangedoras e re­prováveis, na esfera do fenómeno dos subornos. Aliado a tudo isto, ca­so não existisse a televisão, os nossos olhares, nesta altura, estariam voltados para o firmamento e a ouvir, na rádio, Fátima, fados e futebol.
A humanidade é suicida. Criou tudo isto com o discurso na busca de uma vida melhor e, atento o que se vê, as modernidades vieram como uma espécie de sarna. Pelo visto, a solução é esperar pela recriação do mundo. O problema é que não sei se surgirá e quando virá, porventura, a acontecer. O pior é a incerteza. Não se sabe se todos os corações vão poder aguentar, até lá.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

(Imagem: “Fastlar”)

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