Um Conto por mês – Do romantismo ao realismo; da ficção à verdade…

O destino através do tempo

– Como passa?… – Como está?… – É a saudação da maioria dos cida­dãos no meio onde vivemos.
Considerando, em seu sentido lateral, este cumprimento, é a mais banal das perguntas. Trata-se de uma convencional fórmula de cortezia. Contém, em paralelo, uma pesada carga inquisitorial e até, por vezes, de hipocrisia, só possível de se tornar real, na sequência de um profundo exame de pessoa para pessoa.
Como estou eu? Estarei bem de saúde? E aquela dor que senti ao acordar? E a correria, contínua, a caminho do trabalho? Estarei bem po­sicionado no emprego? Estarei bem com a esposa, os filhos, os pais, os sogros, os irmãos, os cunhados, enfim, os amigos? Comigo mesmo? Em paz com a vida, resignado com a inevitabilidade da morte, satisfeito na procura de justiça e de liberdade, pacificado em relação aos projectos não realizados e aos desejos não satisfeitos, finalmente, vacinado contra a cobiça, a mentira, a inveja, o ciúme, a incoerência e o protagonismo barato? Cada pergunta, interpretada de forma abrangente, torna-se con­troversa. Para responder com precisão seria necessário ter sempre em mente, ou trazer no bolso, apontado num papel, o rol de situações que cumpre acautelar. Como, por exemplo, a saúde, vida profissional, rela­ções pessoais, vida sexual e afectiva, grau de regozijo nas posições po­líticas e convicções filosóficas, equilíbrio psíquico, qualidade do de­sempenho das funções fisiológicas, medida de contentamento nos desejos de consumo, entre muitos outros sentimentos de amor, numa contínua pro­cura do sucesso ou da felicidade.
Tudo se baseia na plena satisfação íntima de cada um, portanto, no estado de se ser feliz. Modo de aferir um estatuto de estabilidade, no qual se encontram cumpridas todas as aspirações do ser humano. Termo que exprime um voto de que alguém beneficie de uma sorte favorável, que seja bem sucedido, enfim, que tenha muito êxito no círculo da sua existência. Naturalmente, que tudo isto requer tempo. Ainda mais confuso se torna, porque raro será o caso cuja avaliação se resolverá com um simples sim ou não, visto suscitar dúvidas, hesitações, ambiguidades. O contradizer será necessariamente complexo. Às vezes, até longo, requerendo pormeno­rizadas explicações. Na caminhada vertiginosa do tempo, na maioria dos casos, as respostas enquadradas no contexto do quotidiano perdem, sem dúvida, o seu sentido real.
– Como posso andar bem, se tenho diante de mim e imperativo inelu­tável da finitude? -Replicará, talvez, o angustiado com a efémera condi­ção da humanidade.
– Como posso andar bem, num mundo de miséria e iniquidade? – Respon­derá, certamente, o preocupado com a justiça social.
Dá vontade de rir… O que se pretende, no seguimento da pergunta “como passa” não é nada de fatal, de tristeza ou de tragédia. Aguarda-se, sempre, a polida mentira:
– Estou bem, obrigado! – E a pessoa estará, realmente?

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A praga do nosso tempo é querer impôr a cada um, segundo a sua vivência, numa sociedade de consumo, em que se marginaliza uma acentuada faixa etária de gentes, o padrão da realização, o dever, à força, que no mais fundo de si sente contentamento por se terem materializado os seus sonhos, as suas aspirações, portanto, num culminar de conseguir todos os seus objectivos.
– Sejam felizes… – Desejam, sempre, quase todos os pais aos filhos.
Mas… como ser feliz? Como saber o que é ser feliz? Como saber se somos felizes? Qual o critério? A obsessão por esse impossível cálice sem bebida, essa miragem chamada felicidade, impõe um peso difícil de suportar. Ser feliz ou aparentar ser feliz, é o que importa. O medo de não ser ou parecer que não se é, por norma, responde-se ao cumprimento em termos de récita:
– Cá vou andando… – Mesmo quando a situação do inquirido é incon­tornavelmente má, seja por um padecimento físico, às vezes até evidente na aparência, seja por carências materiais, seja por um sofrimento mo­ral, como a morte de uma pessoa próxima, ou outra turbulência no campo afectivo.
Houve tempo, nas nossas terras, não sei se ainda existem expressões de cunho religioso, mas é provável que continuem, que invocavam a pro­tecção divina e que eram empregadas, de forma de cumprimento, pelas pes­soas quando se encontravam. Curioso, sem nenhuma curiosidade tangível, que numa zona do planeta terráqueo onde a guerra impera e as mortes su­cedem-se, todos os dias, cumprimenta-se em Israel, dizendo: “Shalom”! – Paz.
Os arábes, não ficam atrás, nesta metáfora, acentuando: “Salam”! – O quase igual. No entanto, a paz é para os outros.
Um dos povos que porventura é mais alegre, mesmo invadido pelo in­fortúnio, são os brasileiros. Constata-se tal facto, quando se visita aquela nação, bem como através das diversas telenovelas que passam nas nossas televisões.
– Como vai você? – É a expressão que já se encontra quase abolida do vocabulário brasileiro. Estão noutra era, noutro mundo, portanto, noutra argumentação.
– Tudo bem? – Já não se pergunta como vai, mas sim, numa antecipa­ção da resposta positiva.
O “tudo bem” estreita a opção da pessoa que fala. Não se deixa a questão em aberto. Joga-se, desde logo, diante dela, insidiosa e irrecusável, ainda de forma interrogativa, a alternativa correcta, que não pode ser outra, senão a da felicidade, do prazer e do bem estar. É um procedimento que se cimentou entre aquela sociedade. Não precisam de perguntar “como vai”. Avançaram no alegre, jovial e travesso “tudo bem”, na certeza de que, da parte do interlocutor, não virá outra expressão, senão a confirmação.
– Tudo mal? Explicitando a alternativa oposta, não se coloca, por­que ninguém ousará cumprimentar dessa maneira, visto que cairia no ri­dículo.

Nota: – Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

(Foto: “Revista Recreio”)

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