Um Conto por mês

Do romantismo ao realismo; da ficção à verdade…

Nebulosos sentimentos

Cansada do corpo e da alma, após um dia fatigante de trabalho como secretária da administração duma companhia multinacional, Ana Cristina entrou numa pastelaria, sentou-se e pediu chá com leite, acompanhado de um pastel de nata. Eram cerca das dezanove horas. No Inverno, a noite já se apresentava cerrada. O barulho próprio da cidade do Porto sentia-se mesmo dentro daquele estabelecimento. Naquela altura, em simultâneo, cruzava os ares um avião, passava no arruamento um autocarro dos transportes colectivos e no subsolo corria, apressado, o metropolitano. Que barulho! Os edifícios estremeciam. Mas era a imagem do progresso em todos os seus aspectos.
Naquele dia não lhe apetecia ir cedo para o apartamento. Ela e o marido estavam a ficar fatigados da presença física um do outro. Os agastamentos tornavam-se frequentes. Alguma coisa corria mal. Talvez a falta de um filho, ou as muitas solicitações da vida. Resolveram afastarem-se por tempo indeterminado, a fim das ideias, porventura, assentarem. A casa estava vazia demais. Fumou um cigarro, que acendeu, com requinte, na área permitida da pastelaria. Ao expelir o fumo para o ar, que os seus lábios vermelhos, belos, redondos, parecendo a cor das cerejas carnudas já amadurecidas o faziam, compassadamente, mostrava umas mãos delicadas com dedos finos e unhas bem tratadas. Talvez fosse jantar fora e, depois, ao cinema, ou dar uma volta por qualquer Centro Comercial.
Para melhor passar o tempo foi comprar à tabacaria uma revista. No decorrer da leitura, em coluna adequada, despertou-lhe a atenção o seguinte anúncio: “Sou um moço de 22 anos, sensível e romântico. Procuro jovem do sexo feminino, dos 18 aos 30 anos, para um convívio adulto, responsável, a fim de se pautar uma boa amizade”. Fechava com o endereço.
Ana Cristina meditou nesta publicação… Por um lado, apetecia-lhe responder, por outro, em simultâneo, ficou pensativa, reticente, receosa. Travava-se, dentro dela, uma luta de sentimentos. Depois de muito batalhar, entre o sim e o não, replicou, nestes termos:
– Respondo, com agrado, ao anúncio que inseriu em revista da especialidade. Sou uma jovem casada, bem empregada e com estabilidade financeira. Gosto de conviver e estabelecer boas amizades. Desempenho funções de secretária. Possuo carro e casa própria. Sinto-me, no entanto, limitada no meu ambiente familiar. Considero-me actual, responsável e a saber estar na vida. Tenho trinta e cinco anos de idade. Aprecio a discrição como ponto fundamental. Gosto de ter familiaridade com pessoas no uso da razão, tendente a quebrar a rotina do quotidiano. Poderia estar, aqui, a traçar o meu aspecto físico, mas parece-me situação desnecessária, através do papel. Sou apologista de um encontro, a fim de se trocarem, pessoalmente, as mais variadas impressões. Depois, ambas as partes estão à vontade para dar ou não continuidade. A falada troca de impressões será em local, previamente, a combinar. Por agora, é tudo…
Deu a morada do emprego. A resposta não se fez esperar. A carta, um tanto longa, com excertos quer românticos, quer realistas, razoavelmente trabalhada, mostrando cultura, apareceu. Encerrava com a assinatura e o correspondente endereço.
Leu a carta, apressadamente, ao mesmo tempo que a sua bela face, meio encoberta por um longo cabelo preto, macio e sedoso, ficou vermelha, muito vermelha e as orelhas a arder. Voltou a ler, devagar, saboreando frase por frase.
– Que fazer?… – Pensou. Apetecia-lhe dar continuidade à escrita, tendente a proporcionar-se um encontro. Queria mudar… sentir novas sensações. Faria umas férias na Ilha da Madeira de onde o correspondente era natural. Por outro lado, uma voz repercutia-se, no seu intimo, a apontar o risco que poderia correr ao caminhar no escuro. Os seus lindos olhos verdes, que transmitiam luz, alegria, juventude, naquela altura, perante a confusão de sentimentos que reinava no seu espírito, perderam o brilho habitual, humedecendo, ao mesmo tempo que exclamou:
– Porra! Que vida a minha… – desatando a chorar.
O telemóvel tocou. Do outro lado, falou o marido, dizendo que chegara, porque tinha muitas saudades, concluindo:
– Vou buscar-te – fez pausa – onde estiveres. Vamos jantar ao Casino da Póvoa e assistimos ao espectáculo de variedades que segundo a crítica, além do elevado número de figurantes e riqueza do guarda-roupa, e cenários, é considerado de grande valor artístico. Depois, aproveitamos para dançar um bocado numa discoteca na zona periférica de Ofir, daquelas, embora raras, onde se pode ouvir música suave, lenta e repousante. Um beijo. Até logo……
Ana Cristina desligou a chamada e respirou fundo, ao mesmo tempo que a carta, rasgada aos bocadinhos, foi parar ao cesto dos papeis, não obstante ter anotado o endereço. No futuro, tudo poderia acontecer……

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

(Imagem: “IG Delas”)

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