Utópica realidade

Caminhava, sózinho, pela grande cidade que há anos me acolheu e on­de passei bons tempos. Agora, sentia-me desesperado. A fábrica onde tra­balhava tinha fechado há cerca de dois anos. Ao contrário do que acontece noutros países de integração europeia, o subsídio do Fundo de Desempre­go, abarca, somente, um espaço limitado de tempo. Ainda não tinha conseguido outro emprego. Pudera, com sessenta anos de idade ninguém me que­ria! Quem me comeu a carne que me comesse os ossos. A reforma antecipa­da, também me era negada, porque faltavam descontos que a administração da firma locupletara-se à minha custa e de outros trabalhadores. Nin­guém se importou! A fiscalização não actuou. Agora sou eu o prejudica­do.

Mesmo a conseguir essa famélica reforma seria uma miséria. É o regi­me de Segurança Social que temos. Confortava-me, ainda, o facto de ter saúde para prosseguir na procura de algo que me pudesse valer.

Quem sa­be?… Talvez principiasse a apanhar papel e cartões deixados na via pública, antecipando-me ao carro do lixo. Vendido, dava uns euros… ou, então, passaria a engraxar sapatos, ou atava uma mão ao peito, colocava óculos escuros e iria pedir esmolas. A vergonha, a timidez ou a inibição teriam de ficar para trás, de uma vez por todas, a fim de começar a fa­zer dinheiro de qualquer maneira, tendente a subsistir na arena da vida.

Esta situação, agravada pelo facto de ser casado, mas felizmente sem filhos, contribuiu para que a minha mulher, mais nova, ainda apete­cível, me tivesse deixado. Passou a viver bem. Abriu uma residencial de encontros casuais e não lhe faltou dinheiro e amigos do momento.

Comigo passou-se o contrário. Este problema expulsou-me da casa onde vivia, no decorrer de um processo de despejo sumário, pelo facto de não possuir rendimentos para pagar a renda mensal. E, pronto, lá se foi o meu últi­mo conforto. O destino empurrou-me para um barraco que, à volta, era um mundo de porcaria. Não havia água, nem saneamento básico. A electricidade era roubada de ligações directas e corria através de fios sem qual­quer protecção. Os tugúrios estavam cheios de lama misturada com dejectos, no Inverno, e poeira e mais poeira e detritos humanos, no Verão. A rataria e toda a espécie de moscas e mosquitos exibia-se por todo o lado, à volta das barracas, no meio do esterco, enfim, perante tudo o que se possa imaginar de degradante, miserável e infecto-contagioso.

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Avizinhavam-se eleições. A luta pelo poder já abrira muito antes da campanha eleitoral. Criavam-se, portanto, as mais diversas encenações e protestava-se, por tudo e por nada, na intenção, para uns louvável e para outros não, de despoletar os mais variados conflitos. Eram as cha­madas “guerrilhas” institucionais.

De repente, ouço um clamor. Dezenas, centenas, milhares de pessoas apareceram no topo da avenida, que naquela altura percorria, e iam desfilar à minha frente. Empunhavam cartazes. Diziam-se em greve. Acena­vam com diversas bandeiras e dos mais variados tipos.

Conduziam carros, carrinhas, camionetas e triciclos que encimavam aspectos caricaturais a exigir melhores regalias ou a denunciar situações de trabalho. Enfim, as reivindicações centravam-se na evolução do custo de vida e da produtivi­dade, bem como reclamando a aproximação dos ordenados à média comunitária, destacando-se, por esse facto, as consequentes perdas salariais no contexto europeu. O patronato prosseguia numa política de redução de sa­lários e multiplicavam-se as falências. Pretendia-se a revisão profunda do quadro jurídico laborai, numa linha de flexibilização e de desregulamentação das condições de trabalho. Caminhava-se, também, para o conse­quente esvaziamento do conteúdo das convenções colectivas, face a um nítido desrespeito pelas bases fundamentais do sistema de Segurança Soci­al. A concessão de benefícios fiscais só aproveitava os patrões. Tudo incompetências! Bastaria atentar-se nestes conceitos para se constatar da necessidade de reformar toda a classe política. Referiam ser notória a existência de um divórcio entre os sistemas político e judicial, coli­dindo com os cidadãos, decorrendo tal facto de múltiplos circunstancialismos, atentas burocracias enfadonhas e emperramento de processos nos tribunais. Acentuava-se, assim, o défice democrático. Teria de haver jus­tiça social que evitasse a exclusão social, porque, em contrário, esta­va-se a assumir a barreira da ilegitimidade.

As vozes saldas dos altifalantes afirmavam querer-se melhores salários, reformas adequadas a abarcar todos os campos da vivência humana, protecção aos desempregados, igualdade, fraternidade! Reclamava-se, em paralelo, contra a árvore genealógica que se instalou de forma vergonho­sa no Governo e que, além de enorme falta de ética, estava a fragilizar a democracia.

Neste pulsar de reivindicações, o que deveras me espantou, é que eram trabalhadores de todas as profissões. Conhecia alguns a desfilar com estabilidade de empregos e bons ordenados, quer de empresas públi­cas, quer particulares, suportados pelo apego ao sindicalismo. Possuíam automóveis de certo porte e andavam bem vestidos, mostrando prosperida­de e índices de riqueza, porque quando ia comer uma sopa ao balcão de certos restaurantes estavam a banquetear-se, saboreando marisco e be­bidas de marca.
Qual a finalidade da manifestação e da greve? Para exigir o quê?… Era para acabar com a situação de desempregados, como eu? Era para aca­bar, também, com o sistema das reformas diferenciadas que existem entre trabalhadores da administração pública e privados? Todos iriam ter, por­tanto, as mesmas oportunidades a regalias nas formas de calcular a an­tiguidade. Os anos de serviço prestados e a contar para a aposentação deviam ser uniformes, atento todo o gênero de trabalho, a fim de evitar as desigualdades existentes.

Perante este cenário adivinhava-se o nascer da garantia social, até agora só escrita na Constituição, que todos os portugueses seriam iguais e teriam os mesmos direitos. Senti-me tão satisfeito, tão alegre, leve, sorridente, que corri a juntar-me àquela massa humana. O meu pesadelo e o meu desespero iriam acabar, tinha a certeza. Voltei a querer ouvir dis­cursos de solidariedade.

Era Inverno. Encontrava-me a passar uns dias na Serra da Estrela. Durante esta época do ano deslocam-se pessoas de todos os pontos do país para admirarem o espectáculo daquele conjunto de fraguedos, neve e céu, que é maravilhoso. Subimos aos pontos mais altos desta cordilheira movi­dos pelo prazer da vida ao ar livre, em busca de emoções que só neste lo­cal nos pode proporcionar. O cume da montanha, de nível acidentado, en­contra-se marcado pelo vestígio de antigas glaciações, constituindo divisória de águas e dando origem a formação de rios, alguns de importante di­mensão. À grande diversidade paisagística, onde pontuam ainda interessantes formas rochosas talhadas pela erosão, junta-se uma flora rica, mas alguma com certa endemia, o que lhe reforça, ainda, mais beleza, por ra­zões climatéricas motivadas pelo vento e pela neve.

Devido àquela correria e alvoroço do sonho que tivera, de certo que caí da cama e… acordei gelado em cima do tapete. Safa!

Nota: – Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acor­do ortográfico.

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