VIDAS OBSCURAS

Conheceram-se no apartamento da madame Laura, na Avenida de Roma, da cidade de Lisboa. Era um edifício de sete andares, servido por três elevadores, todos destinados a comércio e serviços, com excepção do úl­timo, para melhor despistar, encobrir e confundir a actividade desenvolvida, num lugar de requinte, dedicado a apresentações pessoais de uma clientela, previamente seleccionada, para conviver sexualmente.

Ela, Rafaela do Lago, era uma jovem alegre e bastante original. Arranjava motivos para tudo festejar, numa tentativa de esquecer, ou ame­nizar, as contrariedades do seu viver. Encarava qualquer coisa sem­pre pelo lado positivo. Usava um corte direito do cabelo, levemente des­fiado, à frente e nas pontas, para lhe dar movimento e torná-lo menos pesado e mais volátil, que intensificava o brilho numa face que apetecia beijar. Era uma moça atraente, de aspecto elegante, que cursava Direito na faculdade da capital. A partir de certo momento temporal passou a encobrir, no quotidiano, a prática que recorreu para obter rendimentos de sustentabilidade. Oriunda do norte, veio para Lisboa estudar, onde con­seguiu vaga. A meio da licenciatura a infelicidade veio importuná-la.

Os pais, já idosos, faleceram quase em simultâneo. Ficou privada dos rendimentos mensais para dar seguimento à estadia num ambiente difícil, caro e controverso. Que fazer? -—Pensou. — Desistir, regressando às ori­gens e às dificuldades que, porventura, haveriam de aparecer. Não o fez. Guiada pelos conselhos de uma colega, passou a conviver, ocasionalmente, numa via de apresentações fáceis, que dava dinheiro e poderia, sem dúvi­da, concluir o curso. Foi apresentada à madame Laura. Ficou deslumbrada com a sublime decoração do apartamento e do seu aparente conforto. Bro­tou, logo, à primeira vista, uma enorme simpatia entre as duas mulheres. Deixou o quarto modesto onde pernoitava e hospedou-se na habitação da madame.

Ele, Carlos Duarte, era um empresário de sucesso, na grande cidade cosmopolita. Homem de meia idade, bem conservado, com ar distinto e cheio de vivacidade e de um excelente nível de vida. Casado e sem filhos.  Culpavam-se, um ao outro, marido e mulher, da falta de procriação, mas re­cusavam-se a consultar especialistas da área, a fim de ser averiguada onde se encontrava a deficiência causal. Era uma vida de aparências. Mostravam aos outros que eram felizes, enganando-se a eles próprios. As intimidades há muito que tinham terminado. Cada um dormia no seu quarto. Suportavam-se, devido a terem casado no regime de comunhão geral de bens e necessitarem, agora, de aparentar estabilidade familiar e finan­ceira, relativamente às empresas que geriam. Visitava a casa da madame Laura. Conheceu a sua nova pupila. Gostou, ou melhor, gostaram. Ele veio dar-lhe o necessário equilíbrio financeiro. Ela retribuiu, com a sua feminilidade, alegria, juventude e sabor sexual.

 

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Com o andar do tempo, as relações entre os dois pegaram fortemente. Acabou por sugerir à Rafaela que deixasse aquele apartamento, passando a residir noutro, por conta dele, a fim de ser mantida uma relação de maior proximidade. Foi recusado, mas prometido que seria só para ele. Justificava a rejeição, porque via naquela pessoa, ao mesmo tempo astuta e bondosa, uma segunda mãe. A madame Laura deixou de a apresentar aos outros amigos que a visitavam, entre eles, ministros, deputados, homens de negócios, advogados, enfim, uma enorme gama de fortes personagens, tanto em currículo como em dinheiro.

Os estudos na faculdade decorriam normalmente, aliado a um desejo enorme de ser feliz, gozar a vida, que até certa altura tinha-lhe sido bastante perversa. Pensava no Carlos, que respeitava em todos os aspectos da vivência humana. Além de lhe dedicar uma profunda afeição, considera­va-o, paradoxalmente, como um protector muito próximo da paternidade, que lhe patenteava uma diversidade de passeios, aliado a uma estabilida­de financeira.

Jantavam, com assiduidade, em restaurantes de luxo, na presença de cardápios estupendos, à beira mar, debruçados sobre o oceano azul e on­dulante, que banha a orla marítima desde Lisboa, para além de Cascais, passando pela Boca do Inferno, que só é feia de nome, perante uma infini­ta e cativante visão a atingir as rochas elevadas do Cabo da Roca na sua envolvência com a serra de Sintra. Aos sábados assistiam a shows em casas típicas, ao sabor de apetitosas ceias, frequentando, a seguir, as discotecas da área.

Numas férias de Carnaval, na presença dos primeiros dias do sol primaveril a avivar os seus corações e no ensejo de alcançarem mais viva­cidade nos encontros foram até ao Brasil, onde presenciaram os desfiles carnavalescos. Às noites, num bar disco, divertiam-se, ao som da música, a degustar a comida tradicional, num ambiente acolhedor, enfim, propício para dançar o “forró”.

Foram passar um fim de ano à Ilha da Madeira, que beneficia de cir­cunstâncias climatéricas bastante amenas. As condições específicas do anfiteatro da cidade do Funchal, transformam toda aquela paisagem num grandioso presépio iluminado com milhares de lustres, oferecendo à con­templação dos visitantes um cenário de invulgar beleza, convidativo ao afecto, ao amor, à simpatia. Assistiram a uma ilha em festa para assinalar a passagem de ano. Do terraço de um hotel, onde ficaram hospedados, admiraram o céu do Funchal, todo iluminado por um vistoso e criativo fogo de artifício que prendia e cativava com mais vivacidade, principalmente, para os apaixonados.

Foram, noutra ocasião, coincidente com as férias da Páscoa, até Pa­ris. Entre outros locais, visitaram o “Moulin-Rouge”, cabaré de renome, situado no Pigalle. Na altura de abrirem a garrafa de champagne, o entusiasmo momentâneo contagiou-os, tomando conta deles, que se abraçaram,

beijando-se, longamente, enquanto que, na “passerelle”, desfiavam as “girls”, apresentando uma firmeza de espírito que parecia mostrar que o mundo girava somente para eles. .Assistiram à revista que estava em cena, numa mesa para dois, junto ao palco, cheirando o perfume das bailarinas e alguns dos seus elementos decorativos, como as lantejoulas, a roçarem-lhes nas faces.

Neste ambiente eufórico de bem estar amoroso, a Rafaela terminou a faculdade, licenciando-se em Direito. Ingressou, desde logo, nos Estudos Judiciários, porque pretendia entrar na magistratura. Inclinava-se para a carreira de juíza. Concluído o curso de aperfeiçoamento profissional com alta classificação, foi admitida no quadro de magistrados e colocada num tribunal da província, na região transmontana.

 

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A separação abriu brechas profundas no relacionamento. Em princípio, o diálogo manteve-se. A pouco e pouco, foi diminuindo. A juíza evitava os contactos, a fim de se acautelar de futuros compromissos, tentanto, com a ausência, arquivar o passado. Casou. Teve filhos.

O empresário, face aos constantes conflitos com a esposa, teve de aguentar um divórcio e submeter-se a partilhas devido ao regime de casa­mento. A idade, um tanto avançada, a divisão do património, conjugado com agastamento da pessoa jovem, contribuiu, sem dúvida, para a falta de firmeza, acabando as empresas por falirem. Tudo isto trouxe-lhe as mais variadas responsabilidades e consequências, como o desemprego dos traba­lhadores, agravado com as dívidas ao Estado, seguindo-se a penhora ao que restava da sua responsabilidade. Reformou-se. O valor mensal da pensão, que passou a receber, também sofreu um corte, porque foi-lhe apreendida uma parte a fim de amortizar as dívidas ao fisco. Foi forçado a abandonar o luxuoso apartamento, que teve de vender, passando a residir numa modesta habitação, a pagar aluguer. Relativamente à matéria do crime, respondeu em Tribunal.

No dia do julgamento, sentado no banco dos réus, teve de se levantar quando a juíza deu entrada. Era a Rafaela! Com o tempo e o bom serviço prestado conseguiu colocação na cidade de Lisboa. Foi um choque no coração das duas personagens. Ela, temerosa, a pensar que se viesse, por qualquer razão, a falar do passado. Ele, triste, abandonado, de mau aspecto, cal­vo, desdentado, titubeante, ficou à espera de uma possível absolvição. Que fazer? — Pensou a magistrada. Não pretendia, de maneira alguma, condenar aquele homem, porque a vida , pela sua fisionomia, já o tinha con­denado. Procurou, com artifício, um facto omisso no processo. Adiou o julgamento. Pediu ao advogado oficioso que apresentasse prova. Marcou nova data para o prosseguimento, que não ocorreu, porque nesse meio tempo o faltoso empresário acabou por falecer.

A juíza, averiguou, de maneira subtil e harmónica, o cemitério onde o Carlos Duarte foi enterrado. Fez-lhe uma visita. De pé, a vibrar no seu interior uma forte emoção nostálgica, lacrimosa, colocou-lhe na campa térrea mal tratada, um ramo de rosas vermelhas, iguais àquelas que outrora, ele lhe oferecia. Que descanse em paz! — desejou-lhe em pensamento.

 

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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