Amados quadros

O século saía de rastos, depois de convulsões, polémicas e lutas desiguais; saía curvado e sem vencedores nem vencidos. Apenas as revolucionárias tecnologias pareciam poder manter de pé as sociedades inertes pela queda mais ou menos abrupta dos chamados valores civilizacionais. Mais do que nunca, na Europa, o futuro era incerto.

O Romantismo rebentara como uma úlcera de sentimentalismo piegas, o Realismo soçobrara sob grave crise do racionalismo positivista.

As nascentes correntes intelectuais da Europa recusavam agora o melodrama do sentimento imbecilizado assim como a frieza de morgue a que a realidade social conduzira artes e letras. A intelectualidade europeia clamava pela novidade na reformulação das mais profundas questões existenciais, das mais diversas experiências sensoriais fornecidas pelos sentidos e pelo “acaso”.

Aventurando-se no reino destas novas sensações, o artista ou o poeta não mais teria que justificar-se nem explicar-se, não aceitaria que lhe fossem impostas regras morais, sociais ou de qualquer outra espécie; o criador passaria a focar-se na sua experimentação sensorial e no ajuste entre a “forma” e o “conteúdo” (essência do Simbolismo).

Breve introdução finalizada (e necessária), passemos a “Judite I (e a Cabeça de Holofernes)”.

Por entre riquíssima decoração a oiro, como nos Ícones gregos, a referência literária gravada na parte superior da moldura – JVDITH vnd HOLOFERNES – conduz-nos ao mito da nobre e virtuosa viúva Judite, descrito no Antigo Testamento (Livro de Judite). Afirma-se que, neste quadro, Klimt terá reproduzido os relevos assírios do Palácio de Ninive, motivos naturais e muito estilizados, característicos da Pintura Decorativa ou Arte Nova. Não fosse essa menção, “Judith und Holofernes”, gravada no topo do quadro, e assim que viéssemos a descobrir a cabeça decepada do general Holofernes (quase desaparecendo de cena na parte inferior direita da tela), diríamos estar perante a sensual e terrível Salomé segurando a cabeça de São João Baptista!…

Deslumbrante de poder e sedução é o rosto de Judite, que assoma parecendo afogueado de uma carnalidade provocatória, olhos semicerrados e a boca aberta como que num orgasmo, e esse rosto fita-nos dominador, por entre oiros olímpicos e uma nudez de seios entrevistos por entre véus. O braço direito, nu, parece acariciar a cabeça de Holofernes enquanto a retira de cena.

Sabe-se que Gustav Klimt escolhia criteriosamente as suas modelos entre as mais belas prostitutas de Viena e que gostava de fixar nas suas telas as que, muito doentes (doenças venéreas), apresentavam sinais de febre e, portanto, de um certo e delirante aspecto … precisamente aquele que podia ser facilmente confundido com o padrão (convencionado pela burguesia) da “femme fatale”, da “devoradora de homens”…

Imagine-se só o escândalo que se abateu sobre Munique quando este quadro foi exposto pela primeira vez, perante um público aterrado, petrificado… posto em causa… e denunciado como hipócrita no meio de novos sinais, de novos sentidos, novos tempos!…

Sabe-se que Almada Negreiros para título do seu romance “Nome de Guerra” havia primeiramente pensado chamar-lhe “Judite, Nome de Guerra”. É, no mínimo, interessante…

N.B– O Autor não segue as normas do novo Acordo Ortográfico.

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