Meditação no templo

Vivemos muito de estados de humores, porque a vida está constantemente a surpreender-nos e a preparar-nos partidas, como se não fossemos gente de bem. Joaquim Terroso falava como se não nos tivesse por perto. Para o alertar de que estava acompanhado, dissemos-lhe que devia encarar com naturalidade as agruras da vida. Aliás, é o que regularmente lhe dizemos nos nossos habituais passeios. Trata-se de um companheiro de excelência, a respirar bondade, com todos os predicados próprios de um cidadão elevado, mas também tem dificuldade em deixar de se “resinar” e ver o mal onde muitas vezes ninguém o vislumbra. A rematar uma conversa bem picada, costuma dizer-nos: “deixemo-nos de filosofias, porque na minha idade tudo tem que assentar na conversa direta. Estou um pouco velho, mas ainda não me dá para o enredo”. Como já o conhecemos, uma pancada amiga nas costas dá logo para o pôr a sorrir.

Andou imenso tempo a falar de um passeio por Santa Luzia sem que lá pusesse os pés, mas, depois do primeiro, já vai no terceiro. Mais uma vez entrou no templo para o seu momento de meditação, algo que desde a primeira hora nos surpreendeu, já que sempre nos disse que tinha muito respeito pelos católicos praticantes, mas ele nunca foi muito dado a esses exercícios. – Sabem, a velhice também nos vai vergando, dizia-nos à saída: “Esta nave, com o seu altar mor e os dois laterais, é esplendorosa. Ficam muito bem no altar o busto do Sagrado Coração de Jesus – uma réplica do que está no exterior, de Aleixo Queiróz Ribeiro – e os dois anjos da responsabilidade de Leopoldo de Almeida, exemplarmente executados por Emídio e Albino Lima, em mármore de Vila Viçosa. Depois aqueles frescos da Via Sacra, representando a Ressurreição de Cristo – que muitos não adoram – a mim, impressionam-me”.

– Bom, Caro Joaquim, já vimos que esteve a ler a “Montanha Dourada” de Maria Augusta d’Alpuim? – Sim, sim, ontem mesmo. Sabem, juntei o útil ao agradável: informei-me para melhor contemplar, e meditar. Faz-nos falta a meditação.

Mas também vi no livro da Maria Augusta que para esta fantástica obra muito contribuíu uma plêiade notável de vianenses. Fala-se muito por exemplo, de João Alves Cerqueira, um dos mais distintos vianenses. Que sabeis dele?

– Algo sabemos, caro Joaquim. 

– Digam, digam, que vos ouvirei com atenção.  

João Alves Cerqueira, já como empresário ousado, toma conta da Empresa de Pesca de Viana (EPV) em 1932, quando esta corria o risco de se extinguir. A partir daí, jamais a abandonando, soube conduzi-la com mestria, tornando-a, por muito tempo, na única com dimensão no Alto Minho. A EPV começou a engrandecer-se depois de uma encomenda feita por João Alves Cerqueira aos Estaleiros Navais da CUF, para a construção do navio “Santa Maria Manuela”, um lugre de aço, com motor e quatro mastros, lançado à água em 1937, e considerado, naquela época, o mais representativo navio de pesca do bacalhau. Depois, ao mesmo construtor, também em aço, encomendou os navios “Santa Maria Madalena” e “São Ruy”, em 1939.

Mais tarde, sonhou a construção dos Estaleiros de Viana do Castelo (ENVC), porque o progresso da sua terra estava-lhe na alma. Daí que, nas suas constantes congeminações, sempre lúcidas e pertinentes, pelos conhecimentos que granjeou com os técnicos dos estaleiros de Lisboa, quando aí se deslocava para acompanhar a construção dos três navios referidos, desse andamento ao projeto idealizado, a implantação de um estaleiro em Viana, que dignificasse a fama outrora adquirida pela construção naval vianense.

– Mas sobre os ENVC já aqui falamos recentemente, abordando uma história muito rica. – É verdade, amigo Joaquim. E não nos vamos repetir. Digamos apenas que os ENVC foram fundados em 1944, mas envolvidos em profunda crise, em 1950, a maioria do capital da empresa passa a ser do Parry Son, com Jacques Lacerda como presidente do Conselho de Administração. Então, a partir desta data, João Alves Cerqueira manteve-se na EPV, para além de explorar outras variantes de negócio, como o comércio de sal, figo e exportação de toros de pinho. Paralelamente, dá largas à prática do bem fazer. A sua vasta obra social é sobejamente conhecida. E tantas fora as instituições que beneficiaram do seu altruísmo! Lar de Santa Teresa, Santa Casa da Misericórdia, Congregação da Caridade, Bombeiros e Cruz Vermelha, foram instituições que muito beneficiaram do seu amor ao próximo. Depois as associações culturais e desportivas, com principal destaque para o Sport Clube Vianense, também muito lucraram da sua prática generosa. A rematar, pode dizer-se que João Alves Cerqueira não podia ver ninguém a passar fome, daí as centenas de pobres que anonimamente o procuravam.

Mas, em toda a sua vasta e abnegada obra de benemerência, algo ressalta distintivamente e o faz eternamente lembrado, que foi o seu avultado contributo para a construção deste Templo-Monumento consagrado ao Coração de Jesus.

– Os homens visionários e generosos nunca deviam morrer. – É verdade caro Joaquim, mas morremos todos e, a 10 de dezembro de 1966, também João Alves Cerqueira nos deixou, com profunda consternação dos vianenses. 

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