O banquete requiem

Os banquetes, almoços e jantares comemorativos ou de homenagem não podem desaparecer. Na civilização actual constituem um importantíssimo elemento de destaque. Um sinal que abre e um ponto que fecha todos os actos em que se pretenda distinguir ou homenagear alguma personalidade ou certa data ou efeméride. Inicia-se um negócio, lança-se ou relança-se um partido político, celebra-se um casamento ou aniversário, destaca-se uma ideia ou pessoa, aí vai uma festa. Dissolve-se um grupo, falha uma questão, criticam-se opositores e surge a ideia de convocar os que estão do lado positivo da barricada para comer e beber. Tudo isto, à primeira vista, talvez pareça um tanto discutível.
— Porque razão absurda — perguntam alguns — se há-de demonstrar admiração ou afecto por uma causa ou alguém, terminando o acontecimento à volta de uma mesa a encher a barriga? Que relação pode existir entre o cardápio e o conceito que se faz de um feito ou de um homem? Porque motivo ao político que se notabilizou, ao literato que escreveu um li­vro que esgotou edições, ao orador que pronunciou um discurso, ao gover­nante que tratou em primeiro lugar os interesses do povo, fazem-se-lhes ingerir, como demonstração de admiração publica, vários aperitivos, abundantes doses de alimento, tudo regado com bons vinhos brancos e tintos, seguido de cafés e digestivos?
— Bem… bem… — afirmam, outros — Tudo o que se diz, à primeira vista, talvez mostre certa desconexão. Mas numa análise conjuntural pro­funda, nota-se que uma misteriosa ligação une as ementas aos assuntos, embora certos espíritos possam julgar que estas temáticas não se conju­gam com as iguarias, principalmente, na visão do revanchismo.
Todos sabemos que uma comemoração que meta no final, nem que seja só um verde, porto ou madeira de honra, é a melhor demonstração de ami­zade que, aparentemente, se pode oferecer. Possui, no entanto, certas contrariedades. Quem se inscreve nesse tipo de festas costuma gastar
uma quantia supérflua, visto que podia comer em casa mais barato. Além disso, aborrece-se com a demora do serviço, farta-se de pedir ao empregado para o servir de vinho e tem de suportar, por vezes, um dos vizi­nhos do lado, quando não são os dois, a fumarem cigarros e a atirarem-lhe fumo à cara, porque, por norma, estes grandes recintos não limitam os fumadores. Uma terrível tortura, visto não haver combinação culinária mais diabólica do que, por exemplo, bacalhau à brás “à la nicoti­ne”. No meio de todo aquele entusiasmo e bem estar à saúde da soleniza­ção come-se, bebe-se e gasta-se mais do que o costume. No dia seguinte com a digestão a fazer-se e a mente sobrecarregada, forçosamente que poderão surgir dificuldades no trabalho, acentuando-se, também, as ar­relias orçamentais.

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Era o político todo importante e omnipotente da região onde morava. Mandava e tornava a mandar. Todos obedeciam, mas alguns contraria­dos. Impunha-se pela força quando lhe escasseavam argumentos ou a posição dos outros eram concludentes, embora se intitulasse democrata. Ves­tia bem. Fatos de bom corte, ladeando o pronto a vestir. O ordenado mensal e as alcavalas acessórias formavam um montante apetitoso. Um braçado de notas de euros, que não se podiam deitar fora, conjugado com um cartão de crédito, além de carro com motorista às ordens e sem controle itinerário. O mundo que girava à volta dele sorria-lhe com muitas benesses e atenções. Umas eram, realmente, sinceras, outras de conveniên­cia e ainda outras de hipocrisia, para não dizer de raiva, que no ínti­mo, praguejavam: — Maldito sejas!
No Parlamento, bem como noutros lugares ou reuniões onde pudesse ser ouvido, gostava, colocando um certo ênfase à expressão, de referir:
— A democracia é a voz do povo, mas quem manda no povo somos nós, porque fomos eleitos pelo povo. — Repetia-se, juntando mais uma ou outra adjectividade à frase, através de um sorriso aberto na face, que nunca se conseguiu decifrar o seu real sentido.
O universo da glória durou anos. Uma vezes cumprimentava, outras não, e com o andar dos tempos passou a fazer que não via, na generalidades as pessoas. Passeou bastante. Conheceu mundo, em serviço, para bem de todos, porque foi o contribuinte que pagou. O tempo decorria e os acon­tecimentos de sucesso desenvolviam-se, em catadupa, à sua volta, dando a perceber que a sua posição estava firme, inquebrável.
Como tudo tem o seu calendário, na democracia também não foge à regra. Chegaram, finalmente, as eleições. Falava-se, gritava-se, apregoa­va-se o melhor produto. Todos eram bons e todos iam fazer o melhor pelo povo. No dia de votar esse povo decidiu! O político importante foi estrondosamente derrotado. Deixou de ser líder parlamentar da bancada do poder. Mas quando pretendeu ocupar esse cargo foi ele que afirmou, previamente, que o ia fazer, sobrepondo-se, desse modo, à antecedente vo­tação. Lamentou-se e criticou-se. O silêncio de uns contrastou com a exuberância de outros, no meio de discursos, jantaradas e sorrisos.

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Para tentar esquecer a ferida da derrota os correligionários daquele político resolveram homenageá-lo, não por perder as eleições, mas pelo que foi generoso para aqueles que submissamente gritavam à volta do clã, durante o seu mandato.
Nestes banquetes de política é onde as asserções podem ser mais facilmente comprovadas. A relação íntima que existe entre as ideias e a comida é, nestes casos, mais visível. Os convidados contributos, porque os organizadores por norma não pagam, sentam-se em volta de mesas compridas ou redondas, na expectativa do repasto e de tudo o que se irá falar no período das oratórias.
No caso presente, os rostos pareciam um tanto perturbados, face aos resultados obtidos na legislatura e a demora da comida, devorando-se todos os aperitivos. Tudo passou! Finalmente, aparecem os emprega­dos a servir o primeiro manjar da ementa. Desapareceu a inquietação geral. As aspirações fundiram-se numa só ideia, que era comer. Desfor­rou-se o resultado da derrota. Aos brindes, o espírito dos presentes estava em franco optimismo, em liberal cordialidade. Com o estômago bem composto e o acto eleitoral já esquecido, penderam-se para o apreço, para a ponderação encomiástica, para os apertos de mão efusivos, para o aplauso.
Levantou-se o homenageado. Todos exclamaram: — Bravo! — Cessaram as conversas. O trabalho do convencimento foi produzido pelo repasto. O orador escolheu um bom champanhe para o brinde. Tudo o que veio a seguir sobrou, porque tanto fazia que dissesse uma coisa como outra. Até podia falar em calão. A salva de palmas atrodoadora, persistente, os vivas estentóreos irrompiam na mesma. Era um facto inevitável. O magnate estava de pé. Gritava:
— Havemos de arrancar, novamente, o poder aos inimigos do povo!
Os presentes vociferavam, indignados, a meias pelos manejos dos adversários e a outra metade porque a sua avidez pelo semi-frio de chocolate e baunilha produziu-lhes um incomodativo resfriado nos dentes.
— Nós teremos, no futuro, de continuar a defender os mais neces­sitados! — Clamava a personagem.
Todos berravam:
— Sim!… Sim!…
Continuava, o super-homem:
— Para nós é um dever de dignidade, de honra, no desertar do nosso posto de atento observador para…
— Bravo! De honra! É assim mesmo. — Interrompiam, sem lhe deixar acabar a frase.
Com o decorrer do discurso as ovações ressoavam estrondosas. Mui­tos dos presentes surpreendidos pelas afirmações, quando estavam a mexer o café, na pressa de aplaudirem, entornavam o líquido na toalha, ficando a chávena quase vazia.
Terminada a refeição, voltou o silêncio ao local. Todos partiram satisfeitos. O programa político exposto foi entusiasticamente aprovado. Aguardam-se as próximas eleições para o povo decidir…

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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