(18) Santa Luzia. O passeio há muito desejado

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A vida é feita de surpresas. Ainda estávamos longe da hora combinada e já Joaquim Terroso nos saudava à porta da redação do jornal. De satisfação estampada no rosto, como a querer surpreender-nos, adianta-nos que desta vez é que é. Bem poderia dizer que hoje não hesitaria, tantas foram as ocasiões em que manifestou falta de coragem para subir o monte e, para além de rever o templo e o seu enquadramento, espraiar a vista pela cidade e arrabaldes, que frequentemente cita como de encanto.

Mas, afinal, havia outras razões a justificar tão boa disposição. Estranhamos por o ver acompanhado do neto Constantino e a sua namorada Joana. Se bem estão recordados caros leitores, o nosso parceiro não tinha aprovado que o neto o tivesse trocado pela namorada, conhecida de curta data, nos nossos passeios. Por sinal, os dois até o tinham substituído numa das suas ausências, a provar que não havia razão de mau estar para com eles.

Mas se havia equívocos, agora eles rapidamente se desvaneceram. Terroso estava ansioso por nos contar qual a razão porque queria subir o monte. – Sabem, tem-me faltado a coragem para escalar a montanha, como sempre tanto desejei. Aliás, era por aí que devia ter começado o nosso roteiro pela nossa encantadora cidade, mas a minha pouca disposição para grandes e cansativos passeios, a minha periclitante saúde e outras peripécias levaram-nos a trajetos desgarrados, por isso irregulares, de um percurso que se queria ajustado à interessante e bela história desta urbe. Mas, hoje, não a pé, respirando o ar puro do arvoredo, mas de carro, para lá caminharemos. Contudo, há uma razão que estou impaciente por vos dar a conhecer. Vendo a nossa cara de admiração, diz-nos de imediato: – não se surpreendam, porque quem mais deseja visitar o templo são os jovens noivos. E, surpresa maior, eles querem juntar os trapinhos. Bravo, dissemos nós. – Pois e vocês são nossos convidados para o casório. – Mas quem convida não é você amigo Joaquim, são os noivos. Bom, mas deixemos isso para mais tarde. Vamos então escalar a montanha de carro, não é? – Evidentemente: resposta imediata com sorriso estampado no rosto.

Joaquim Terroso, de lágrimas nos olhos, não se cansava de tudo explicar àqueles que já considerava como, efetivamente, uma dupla de netos. Muita admiração, muito êxtase pela beleza da panorâmica que o topo do monte proporcionava, pela lindeza da igreja onde o enlace, se tudo corresse bem, haveria de realizar-se, mas também muita curiosidade. E aí Joaquim mostra, de novo, o quanto se prepara bem para estes passeios. Oh, e ainda para mais este. Responder aos jovens noivos tinha que ser com respostas sabidas. Escorado em mais uma publicação de que se deve ter visto aflito para encontrar na montanha de livros de que dispõe, logo disse que para tudo teria resposta. – Aqui tudo consta, com pormenor e boa fundamentação. Trata-se do boletim Santa Luzia nº 50, número especial, de julho de 1944, comemorativo do remate exterior do templo. Reparem bem neste pequeno naco de boa prosa na nota de abertura: “Esta celebração do remate exterior do Templo-Monumento devia ser toda escrita em verso, porque a poesia canta e a prosa regista, a poesia celebra e a prosa comemora”. 

– Até os aconselho a não me fazerem perguntas, porque satisfaço de imediato a vossa curiosidade. Quando digo vossa é a dos meus netos, que, coitados, não nasceram ensinados. Vós tudo sabeis, porque a idade, tal como se dizia na tropa do meu tempo, é um posto. Sorrindo, Terroso lá continuou a sua dissertação. – A estátua do sagrado Coração de Jesus, esta obra notável, é da autoria de Aleixo Queirós Ribeiro, sendo inaugurada a 15 de agosto de 1898, a que assistiu o Padre Carneiro, que pastoreava a freguesia de Nogueira. Sabem, esta escultura tem uma história polémica, mas isso fica para outra ocasião. Então, em fevereiro de 1904, iniciou-se o nivelamento do terreno para abrir os alicerces do Templo Monumento e, em janeiro de 1905, foram colocadas as pedras de cantaria na capela mor. Bom, depois, apesar das obras decorrerem com normalidade, a 1910 se chegou e, aí, é que foi o diabo, porque com a instalação da República e a aprovação da lei da “Separação do Estado das Igrejas”, tudo se complicou, já que até os beneméritos, assustados, se deixaram dessa prática. Mas tudo haveria de resolver-se, já que com o Governo revolucionário de Sidónio Pais, o nosso 5º Presidente da República – coitado, apenas presidente por pouco mais de 4 meses (27/12/1917 – 9/05/1918) –, as pazes com a igreja foram restabelecidas, dando desta forma novo impulso ao avanço do projeto.

Em 1918, Bernardo Pinto Abrunhosa, um ilustre capitalista portuense, porque maravilhado com Viana e a deslumbrante vista do Monte para a cidade, empenhado em muito fazer pela nossa terra, por aqui se fixa e passa a presidir à Comissão de Melhoramentos de Santa Luzia, em substituição de João Caetano da Silva Campos. Entretanto, adquire o Hotel, em quase estado de abandono, que Domingos José de Morais tinha mandado construir, e pronto desde a morte deste, em 1903. Abrunhosa torna-se num dos mais empenhados dinamizadores da obra do Templo, e num forte contribuinte para esse fim. Como primeiro exemplo, nesse mesmo ano em que tomou posse, a 18 de agosto, dia de uma peregrinação ao Sagrado Coração de Jesus, mandou cunhar, para serem vendidas pelos devotos, 15.000 medalhas com a efigie de Santa Luzia, iniciativa que se revelou deveras lucrativa. 

Terroso, que nunca se mostra desatento, apercebeu-se da impaciência dos “pombinhos”, como costuma dizer, e, agastado, não adiantou mais esclarecimentos. Aconselhámo-lo a aguardar outra oportunidade. Maldisposto, nem, como de costume, nos convidou para uma bebida. Despedimo-nos, simpaticamente, sem aceitar a boleia, já que precisávamos de respirar o ar puro da montanha. Desta vez, depois de descer aqueles centos de degraus do escadório, ficámo-nos por um estimulante café na Pastelaria Londrina, no Largo de São Domingos. Se não estivesse zangado com o neto e a namorada, Joaquim bem gostaria de ter estado connosco, até porque na casa não falta, desde longa data, o “A Aurora do Lima”, para satisfação de leitura dos clientes. Com certeza que teria ficado bem satisfeito ao deparar com o seu jornal de estimação, sempre muito crítico quando não o encontra em café que frequente. Para a semana, por lá poderemos passar novamente. Que diabo, o nosso amigo não vai ficar aborrecido por muito tempo! 

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