Eça de Queirós disse que Portugal era um país traduzido do francês em vernáculo. A escultura do 25 de Abril dá-lhe razão.
A decisão da Câmara de Viana de remover a estátua do Caramuru da Praça da República merece o aplauso da cidade. Foi uma decisão corajosa, a nível político e a nível pessoal, porque a estátua tinha sido colocada pelo anterior presidente. É raro tal acontecer em Portugal.
Como referi noutros artigos, a escolha do local para inserir uma obra com tamanha volumetria contrariava os mais básicos princípios de respeito pelo património histórico e urbano. Não há – que eu saiba – nenhuma intervenção semelhante nas cidades antigas europeias. Houve, sim, uma remoção de uma estátua do escultor americano Richard Serra em Nova Iorque, uma cidade onde a modernidade engole a tradição. Depois do prédio do Coutinho, Viana destacava-se assim, no mundo civilizado, como uma cidade pródiga em atentados contra si própria.
Todavia, se a remoção do Caramuru devolve a dignidade à Praça da República, Viana deve ainda ir mais longe para que se reencontre com o passado e com a natureza. Refiro-me a mais duas obras de escultura pública que desfearam a cidade: a estátua de Frei Bartolomeu dos Mártires e, sobretudo, a escultura do 25 de Abril.
Quanto à estátua de Frei Bartolomeu dos Mártires, vale o mesmo argumento usado para o Caramuru. Esmaga o largo de São Domingos e menoriza a igreja. A obra tem qualidade, mas está no local errado.
A remoção da escultura do 25 de Abril é mais complexa por ser susceptível de ferir sensibilidades. Como também já referi, a obra peca pelo mesmo erro de uma escala gigantesca e de uma volumetria exagerada, tornando-se assim num monstro metálico e ferrugento que se ergue ameaçador sobre Viana e que oculta o rio Lima. O símbolo da liberdade, afinal, aprisiona. Pior ainda, como qualquer pessoa medianamente instruída percebe, a escultura é um pastiche do Arco do Triunfo dos Campos Elísios em Paris. Eça de Queirós disse que Portugal era um país traduzido do francês em vernáculo. A escultura do 25 de Abril dá-lhe razão. Ora Viana não precisa de copiar Paris, sob pena de se tornar provinciana. A escultura do 25 de Abril, colocada no fim da Avenida da República, produz esse mesmo efeito de imitação anacrónica e parolinha.
Pau que nasce torto nunca se endireita, diz o povo. A escultura nasceu também torta: primeiro tinha as correntes soltas e fazia barulho, depois prenderam a correntes e ficou ainda mais medonha e por fim, num reconhecimento do erro da sua colocação, as correntes foram colocadas no solo. A escultura desfez-se para se tentar esconder. Abriu uma janela sobre o rio, mas continua a tapá-lo com o resto da estrutura. Tanta contradição só pode ter um desfecho: a remoção da escultura para um espaço amplo – por exemplo, o Campo da Agonia – onde possa revelar o seu potencial estético sem agredir o espaço envolvente.
Por outro lado, a relação histórica de Viana com a água seria assim recuperada, num retomar do diálogo interrompido entre a avenida e o rio. Viana, convém recordar, foi, e é, uma cidade de pescadores e navegantes. De que serve homenagear Fagundes e Pero Campo Tourinho se ao mesmo tempo se encobre o rio com outra escultura? A biblioteca e o pavilhão multiusos já criam demasiadas barreiras sobre o rio Lima – Viana voltou-lhe as costas. Desde a Estação dos Comboios até à Praça da Liberdade, o olhar do transeunte deveria poder expandir-se até à água. Foi esse o espírito que esteve na génese da cidade e assim a iluminou durante séculos. Recuperá-lo – voltar a face em vez das costas – é um dever histórico.
Um bom exemplo de como se pode efectuar intervenções modernas junto a um rio sem o tapar, é o monumento de homenagem a Miguel Torga em Coimbra, nas margens do rio Mondego, no qual participou o arquitecto vianense Luís Paulo Sousa. Foram escritos versos do poeta no solo. Tão simples quanto belo e harmonioso.
Viana é uma das cidades mais bonitas do mundo devido ao seu equilíbrio entre o urbanismo e a natureza. A National Geographic considerou que a vista de Santa Luzia é uma das mais belas do planeta. Porém, os seus centros históricos e a sua relação com o rio Lima sofreram a intrusão de obras desadequadas que poucos apreciaram. O Caramuru já não estraga a Praça da República, mas é imperioso corrigir outros erros. Numa altura em que o número de visitantes aumenta e em que a cidade começa a ser elogiada no estrangeiro, numa altura em que a consciência ecológica e o sentido estético dos vianenses se tornou mais exigente, Viana do Castelo deveria libertar-se da canga da escultura ao 25 de Abril e, também, deslocar para outro lado a estátua de Frei Bartolomeu dos Mártires.
João Cerqueira
(Doutorado em História da Arte)