Conheci-o, pela primeira vez, na Escola Industrial e Comercial da cidade de Beja (cerca de 1950-51). Era muito humano. Logo ali me perguntou, quando ou em que altura eu tinha começado a dar aulas, e eu respondi:
- Cerca de trinta dias após me ter apresentado ao serviço!
- Mas você não recebeu uma “Convocatória” do Ministério da Educação para estar neste estabelecimento de ensino, três dias depois?
- Sim, apresentei-me três dias depois
- O que fez o Diretor?
- Como não tinha todos os docentes para começar as aulas, mandou-me aguardar cerca de mais trinta dias para eu começar a lecionar!…
- Foi você quem pagou a pensão e mais despesas com a sua mulher nesta cidade?
- Fui!
- O Diretor procedeu mal! Você não tinha culpa que o corpo docente não estivesse completo. Requeria na Secretaria o livro de presenças e assinava o seu nome, e não tinha que pagar, gratuitamente, do seu bolso, a estadia. Vou já tratar disso!
De seguida, ofereceu-me vários livros seus, para me orientar nas primeiras aulas, e desejou-me sorte. Um ano depois, concorri a Professor Adjunto do 5º Grupo, com uma prova eliminatória a Português. Fui aprovado.
Abrindo concurso para Professor Efetivo do mesmo grupo, em Lisboa, com provas teóricas e práticas na Escola António Arroio, fiquei aprovado e ingressei na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, no Porto.
O meu metodólogo passou a ser um ex-colega da Escola de Belas Artes da mesma cidade que, logo na primeira aula, me disse em voz alta:
- O senhor professor, quando eu entrar, vira-se para os seus alunos (jovens dos 17 aos 20 anos) e diz-lhes: Levantem-se que entrou o Senhor Professor Metodólogo e, depois, acrescenta: Sentem-se que o Senhor Professor Metodólogo já os mandou sentar.
Dito isto, foi ver os trabalhos, um por um. Fiquei estarrecido com aquela atitude e comportamento… Tentei fugir imediatamente, falando no caso ao escultor Caldas, diretor da Soares dos Reis. Ainda fizemos alguns painéis a imitar os “Bisantinos”, com mosaicos “covina”, feitos em Portugal. Um deles era uma alegoria ao Infante D. Henrique e aos Descobrimentos Marítimos de Portugal, e o outro foi a “cópia” das pinturas, a “fresco”, da Igreja de S. Pedro, em Itália, de Miguel Ângelo.
Contei isto tudo ao Calvet de Magalhães, e ele logo me arranjou uma transferência para a Escola-Oficina de Olaria e Cerâmica de Viana do Alentejo, pertencente a Évora. Escola era pequenina, não tinha mais de vinte e poucos alunos (já lá tinha estado 2 anos), o grande pintor Júlio Resende e, um ano, o António Sampaio. Como todos eles (rapazes e raparigas) nunca tinham visto o MAR e não possuíam dinheiro para viagens, excursões ou visitas de estudo, concebi uma “revista musical”, por eles apresentada, pondo em despique a música, pausada e serena do Alentejo, com a festiva e dançante minhota.
Foi um sucesso! Vendemos os bilhetes todos, no Teatro-Cinema da Vila e a orquestra foi composta por mim minha mulher, Mestre Lagarto, que tocava bem flauta, e um outro, seu irmão, que arranhava o violino, a minha mulher o tambor e o meu filho os ferrinhos.
Percorremos vários museus de Lisboa e chegamos a ver pormenoradamente as peças do genial Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha. O mais surpreendente é que, contando estes meus planos ao Calvet que, nessa altura, era o Diretor da Escola Francisco de Arruda, ele próprio propôs-se a ajudar-nos e, no dia em que chegamos a Lisboa, estavam à nossa espera, uma série de pessoas, que eram pais ou familiares dos alunos da sua Escola Preparatória e, logo, nos levaram em táxis para suas casas, onde nos deram dormida e o pequeno almoço. O diretor da Francisco de Arruda ofereceu-nos a “comesaina” no refeitório e não nos levou um tostão por isso. Nós, eu, minha mulher e filho Alcino fomos dormir a casa dele. O Calvet, inclusive, cedeu-nos a sua cama de casal…
Passados meses ou anos, nem sei, depois do 25 de Abril, o Calvet, não aguentando a ideia de ter que sair de Diretor da sua “Escola-Modelo”, onde os sanitários eram os lugares mais limpos e asseados do estabelecimento de ensino, um dia, sozinho, abriu o gás da cozinha e suicidou-se… Fiquei muito triste… Na altura, no momento em que conquistámos a Liberdade, considerava-se que todos os diretores era “fascistas” ou adeptos e simpatizantes do regime Salazarista, isto é, da confiança do Salazar. Longe disso! Não eram todos! Alguns eram diretores devido, apenas, à sua competência profissional. Agora, posso dizê-lo, uma das pessoas que não permitiu que no seu jornal se publicasse uma nota a acusar-me de “fascista” foi, exatamente, o antigo diretor do “A Aurora do Lima”, sr. Aurélio, honra lhe seja feita! Ele e o jornalista, sr. Passos, da Delegação do Jornal de Notícias em Viana do Castelo, não concordaram.
Aníbal Alcino
(Foto: Goodreads)