Agora que o velho Deus – o Entrudo – o eterno descarado pândego já se foi, com alegria para uns, a indiferença de outros e a saudade de muitos, talvez para a maior parte, posso transmitir, sem perturbar o riso alvar do grotesco palhaço, as memórias que me confiou. Conta, assim, o luxurioso e impúdico farsante que quando bateu às portas do globo terrestre a pedir entrada, o porteiro da vida recebeu-o com um sorriso triste e mais amarelo que nos anos transactos, numa atitude de irreverência, quase a assumir aspectos de desprezo. Esta recepção inesperada desconcertou-o.
O frio gelado que percorre as veias dos comediantes em vésperas de fracasso, secou-lhe a boca desdentada de velho libertino, o sorriso imbecilmente jovial dos velhos gaiteiros. E foi com infinita mágoa e com as lágrimas a estragar a pintura dos olhos que afirmou ser o Carnaval a que todos os anos, por esse tempo, vinha correr no mundo, perante a humanidade entusiasmada ou condescendente, dando mostras da loucura desenfreada de eterno mascarado. Era o Deus da gargalhada, o fauno supremo da orgia e do folguedo. O seu riso esfuziante levava atrás de si os cortejos revoluteantes do policromático disfarce, bandos alegres, romarias infindáveis de folgazes e de arlequins. Mostrava-se o eterno mensageiro dos desatinos, protector nato das maiores e da mais saborosas pouca vergonhas. A terra esperava-o ansiosa, para que desapertasse a cadeia que liga os instintos e os apetites às convenções e à moral. Notou, no entanto, que lhe faltava a gente folgazã de outrora que vinha, sempre, ao seu encontro com festejos deslumbrantes, estrondeando gritos de aclamação e de desejo, cromatizada e revoltante, barulhenta e original. Onde estão os cortejos ruidosos de mascarados, admiráveis de grotesco e de disfarce?… Como criador de beleza a sua alma é uma mistura de sonho e de porcaria, de luz e de trevas, de alegrias e de misérias.
O velho e o novo Carnaval, de ontem e de hoje já partiu. Viana de agora, festejou-o à sua moda. As crianças dos infantários e das escolas vestidas das mais variadas imitações, mas a imaginar, nesses fingimentos, um mundo que lhes parece real, percorreram com exuberante satisfação as ruas da cidade no “combóio” da Câmara. Por certo, pela vida fora, não vão deixar esquecer este episódio. Além das discotecas onde é também festejado das mais variadas espécies e feitios, terminou com o Corso este ano, no domingo de Entrudo, que se considera o mais concorrido do Alto Minho. Mas, apesar de tudo, o Carnaval não deixará de bater, todos os anos, às portas do mundo e entrar com o seu “travesti” de jovial farsante e de eterno “arlequino”, desde que cada um não lhe feche a entrada, aborrecido e indiferente…
Nota: – Esta crónica, por vontade do seu autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.