O sobretudo

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Aníbal Alcino

Um dia destes, sem contar, de surpresa, a minha mulher, empunhando um lindo sobretudo na mão, disse-me:
— Ó, Alcino! Veste lá este sobretudo a ver como te fica!?…
Pus-me a jeito, um tanto surpreendido, e enfiei-o, mesmo por cima do casaco que tinha vestido nesse mesmo dia, perguntando:
— De quem é este sobretudo, Helena!? Está como novo e tem uma cor cinzento-escuro bastante agradável! É muito bonito!… Só que me fica um tanto comprido nas mangas…
— Gostas dele?
— Gosto! De quem era?
— Era do senhor Américo, teu cunhado, que já morreu há alguns anos, mas que a minha irmã Lídia o guardou, no armário, até que a morte dela também chegasse!…

O senhor Américo era um homem excepcional, um mecânico competentíssimo, especialista na marca BMW, e tinha uma oficina de reparação automóvel na Rua S. Cristóvão, no Porto. Foi ele que restaurou, competentemente, o primeiro automóvel de origem francesa, que veio para a Cidade Invicta por intermédio do Automóvel Clube de Portugal (?).

Não teve filhos, mas em toda a sua vida viveu sempre na companhia da mulher, passando as férias nas várias partes deste país, sobretudo nas praias. Ele gostava de barcos à vela, do rio e do mar, e percorria, mais propriamente, as do Alentejo Litoral até ao Algarve.

Era muito bom homem, de excelente carácter, e dava-se lindamente com ela. Um dia, como acontece a toda a gente, morreu, e deixou escrito que queria ser cremado, e que as suas cinzas fossem atiradas ao mar, isto é, num recantinho rochoso da Póvoa de Varzim, nas águas marítimas, onde ele viveu e passou toda a sua infância.

A mulher, a Lídia, uma senhora lindíssima, conservou a sua beleza feminina até aos 96 anos (idade com que morreu) apesar de ir a festas e excursões para pessoas da terceira idade, gostando sempre de dançar e sorrir para com as pessoas e vida que levava. Morreu estupidamente, ainda com relativa boa saúde, quando um dia, ao sair de casa, no passeio da rua, um cão qualquer lhe saltou de frente, para lhe fazer “carinhos” (ela gostava muito de animais) e, sem querer a empurrou para trás, fazendo-a cair de costas e partindo a bacia. Dois dias depois de entrar no hospital, morreu.

Não quis nada dos seus bens materiais, mas deixou igualmente escrito que queria ser “incinerada”, como o seu defunto marido, e que as suas ciinzas fossem espalhadas exatamente no mesmo lugar em que foram deitadas as do seu “homem” já falecido poucos anos antes, junto a uns penedos da praia da Póvoa de Varzim.

Um fim romântico, terno e sentimental… é a vida!

Enquanto estava a vestir aquele sobretudo que, como disse, pertenceu ao meu amigo e cunhado Américo, eu pensava que, possivelmente, dentro de poucos meses, dias, horas, anos… sei lá!? também eu desapareceria deste mundo, até que ninguém se lembrasse que tinha vivido como artista e pintor, representado em muitas colecções particulares de Arte e Museus de Portugal. Talvez o sobretudo fosse para outrem….

Amigos e pessoas há que, com o tempo, vão desaparecendo da nossa memória, assim como se nunca tivessem vivido à face da terra.… Continuo a dizer, como o grande poeta Antero de Quental (que se suicidou num banco de jardim) que “de todos os males, o pior foi ter nascido!”

Foto: Wikihand.com

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