O café «Girassol» foi o primeiro local onde me encontrei a mim próprio para além de mim. Tudo é uma fugacidade quotidiana – um encontro de amigos, um refúgio amoroso, um abrigo da chuva colossal, um ponto de estudo – e, para além da rotina, fora dos carrilhos banais, deram-se os primeiros poemas, textos e sonhos. Quando apresentei o meu primeiro livro, numa manhã domingo solarengo, foi lá que parei para beber um café e fumar um cigarro – descarregar os nervos da ansiedade.
Uma breve realização parecia crescer naquela esplanada. Nas paredes arcaicas desde 1930 – as gerações que viram e verão – brotava de lá uma flor.
Escape da realidade natural. Noites de fio a pavio, mas de verão antecedido. Não éramos literatos, nem poetas, éramos, apenas e só, miúdos. Dispersamos a juventude e espantamos a arte. Uma réstia de vontade acumulava no pires e cinzeiro.
Nos regressos vorazes da universidade, havia que regressar à base, para recarregar as energias – relembrar as raízes de onde viemos – de um berço de poeta. O café estalava na língua como a voz da Amália no peito – a saudade de Viana.
Agora a esplanada está deserta e anseio regressar – regressar a um tempo que não volta mais. A memória estagnou no último brinde. O meu pai e eu, duas cervejas. A última cerveja – porque a crueldade da vida ofereceu-me a orfandade paternal.
Sobeja assim a memória repentina da marginal verdejante, a refletir o sol e a inocência de um miúdo, a partilhar sonhos com o seu pai. O brinde é tácito, olhamos o olhar e agarramos os copos, com a cerveja à pressão. E nenhuma cerveja terá o mesmo sabor.
A última cerveja — o último brinde. Será sempre na esplanada do café «Girassol» que vou recuperar o sangue das minhas veias, um pedaço de mim que brindará com o olhar.
Márcio Luís Lima