Palavras, trabalha-as Maurício de Sousa há muito tempo. Esculpir palavras na planície do papel é tarefa de poeta. No silêncio branco, o poeta lavra com tinta, passados, presentes e futuros, longes e pertos, aquis e agoras.
Os silêncios feitos poesia, desde há muito que Maurício de Sousa os tem trabalhado no papel, sob a forma de livros. Desses livros darei conta até chegar àquele cujo título, titula esta notícia.
Desde o longe do tempo de 1975, Maurício de Sousa, telúrico, tem caminhado pelo terreno da criação, a semear um conjunto de obras, como ele afirma, perseguido pela Poesia e com o Lethes a morder-lhe os pés. “Do lento apetecer o tempo” (1975), “Domínios consentidos” (1982), “Poemas sob a colina” (1986) e “Tear de cactos” (1989), são títulos dos seus livros de poesia entretanto editados.
Em maio de 2016, Maurício de Sousa publica a obra de prosa “Carta sem obreia”, dedicada à sua neta Maria Duarte, onde, nas palavras de Michel Foucault, por si citadas, “o traço de uma mão amiga, impressa nas páginas, proporciona o que há de mais doce na presença: reconhecer”. Combinando o rigor literário com uma afetuosa ternura, o poeta passa à sua neta a riqueza indefinível que todo o ser humano possui e que o torna um ser único e estruturante do futuro: o testamento/testemunho de princípios, de valores, de memórias e de vida. O autor/avô escreve que qualquer testemunho é um arroio instável, cheio de surpresas,dizendo à sua neta que o passado– o de teus pais, avós e demais – flui correntio para o teu futuro. Em suma, Maurício de Sousa, deixando-se levar pelos ínvios caminhos do coração, faz-nos viajar pela nossa história social e política, através de pequenas estórias familiares. Aqui, a memória associada a uma irreprimível revisão de vida, desempenha o papel de locomotiva inteligente, tão perto das apetecidas histórias de vida que os antropólogos tão ansiosamente procuram.
Entretanto, com saudades da poesia, Maurício de Sousa retoma-a em 2017, com “Notícias de Horeb”. Neste livro, o autor, com as pétalas das palavras, parte do mítico monte das tábuas da Lei para as leis da terra, onde ventos de futuro e nuvens do sublime, nos fazem crer que os anjos não deixam peugadas na areia / pintam de noite o quarto de branco com tintas de água. Chega então o pandémico ano de 2020. Da terra-criadora de Horeb, passa Maurício de Sousa para a terra-criatura de “Libações de água e sal”.
Numa cerimoniosa forma de poesia, aparentada ao hai ku, na forma e na temática da natureza, deixamo-nos levar, nesta obra, pelo vento e pelo mar, pelas aves e pelas flores, pelo sal e pela terra. A palavra floresce e cria, dizendo:
A alegria é flor
de farinha em terra de azeite
–
pega-se o poema à língua
Nos seguintes anos, Maurício de Sousa ora lavra, ora é cúmplice da escultura, agora acompanhado pela Oficina das Edições que produz as suas obras.
Nos idos de 2021, partindo do branco chão da página de papel, o poeta desafia-nos, em “Pomarchão”, ao deleite do chão lavrado poeticamente pomar tornado. Do corpo da terra-criada para o corpo do discurso, a metáfora cria raízes, lança silindras acácias e trepadeiras, salmodia as árvores… que … os poetas conhecem-nas pelos frutos…
Folhas ramos e nós são afagados por O ar o céu e a água, como dois dos títulos desta sua obra. Clamando pelo aconchego da terra-mãe, Maurício de Sousa vai semeando aqui e ali lembrando muitas vezes o Éden revelado, como se as terras de leite e mel paradisíacas adubassem não o pecado, mas a virtude original do ser humano. José Pastor cumplicia-o nas fotos de naturezas, nada mortas, onde
o brilho do chão luz
por onde o húmus da terra respira
Entretanto, José Pastor acompanha novamente Maurício de Sousa na obra seguinte. Chegamos, desta forma, a 2022, com “Variações sobre o Silêncio”, também com produção editorial da Oficina das Edições.
Nas primeiras páginas do livro, Herberto Hélder é citado definindo “Escultura: objeto para a criação de silêncio” e Maurício de Sousa prepara-se para percorrer o silêncio nos silêncios criados por José Rodrigues.
Desde o Alto-Minho até à terra quente transmontana, passando pelo Porto e Braga, o autor canta obras de José Rodrigues, aliando afetos territoriais a afetos conviviais, como refere.
Tem, o escultor, a necessidade de criar corpos. A partir (ou, com) os corpos criados pelo escultor José Rodrigues e olhados por José Pastor, Maurício de Sousa não descreve, nem sublinha, tão só cria metáforas que percorrem a História, a Arte e o território.
O som dos silêncios percebidos na obra material de José Rodrigues ecoa nas palavras de Maurício de Sousa, tornando-as música/poesia em variações de tom maior.
o escultor
no bulício de s. lázaro a horas incuráveis
embrenhava os dedos no barro e em defesa de Deus
dava forma aos buracos lípidos das massas
e dos vazios –
dava-se sem escrúpulos a uma tarefa
difícil
(do poema “Obsessões”)
José Escaleira