Logo no primeiro olhar nos sentimos fascinados com a atmosfera do quadro. É como se dele ascendesse um grande amor à primeira vista, pela novidade e pelo ar de mistério que vêm, vertiginosos, ao nosso encontro. Na composição, de imediato detetamos dois fatores que nos informam da sua natureza “fantástica”, válidos estes tanto nas artes como na literatura, e que são, em primeiro lugar, a transgressão e, em segundo, a verosimilhança.
A transgressão revela-se pelo claro desafio ao pré-estabelecido, à autoridade tornada norma porque habitual, rotineira, passiva, convencional, em suma, pelo que o vulgo designa como normalidade ou mediania; e a verosimilhança, que nada mais é do que a (literal) “semelhança com a verdade”, pela (mais ou menos subconsciente) decisão de assumir que uma ou várias hipóteses podem tornar-se o certo, o real ou o possível. E isto sucede porque se materializam – na obra, na coisa criada – a qualidade e a eficiência do criador, artista ou escritor, num resultado feliz e de ganho para todas as partes (narrador e narratário/artista, público/autor, leitor), tudo concebido dentro de um frutuoso clima de cumplicidade entre as partes envolvidas nesse elevado processo cognitivo.
A luz que ilumina a cena (estamos perante uma encenação), que tanto pode ser solar como lunar ou mesmo artificial, gera sombras espessas e dominadoras, um tanto ameaçadoras, e divide verticalmente a tela em duas.
Em primeiro plano, uma inocente esfera foi tornada para sempre imóvel, ela que até é o símbolo maior da mobilidade entre os sólidos geométricos (3D)… E à direita, vinda sabe-se lá de onde e desde quando, uma imponente linha de pórticos clássicos é drasticamente interrompida por uma parede (?) que tanto corta a obsessiva multiplicação dos pórticos como nos bloqueia a visão da sugerida profundidade do espaço, que assim, se torna claustrofóbico. Apenas à esquerda e por uma verdadeira frincha podemos aspirar a obter um ponto de fuga e isto só para além de uma rebaixadíssima linha de horizonte adivinhada por trás de um muro de tijolos para lá do qual se sugere, ambiguamente, uma locomotiva a vapor OU múltiplas chaminés numa curta visão de anónimos telhados (haverá outras hipóteses, tal como há múltiplas Manchas de Rorschasch)… Quer dizer, o observador está a ser emparedado no plano da composição e, na sua mente que não no seu sossego, cada vez mais aprecia o estranho processo de sequestro…
Temos o cenário perante nós. Vamos ao centro do palco, à cena principal.
Aí, no meio do maior absurdo e, diria mesmo, da impossibilidade de qualquer jogo de perspetivas, instala-se o caos e estamos nus e desarmados num combate feroz entre a razão e a emoção. Constatamos a total ausência de seres humanos e, perante esta feroz ausência, ainda somos obrigados a assistir à tomada de poder por símbolos que representam a humanidade: lado a lado, uma cabeça decepada de uma estátua greco-latina em ascensão (deus Apolo cego?) e uma típica luva de borracha de cirurgião dos princípios do século XX. A cabeça pode simbolizar a Tradição Greco-Romana, base fundamental da Civilização Ocidental, a luva, as Ciências informadas pelo Positivismo aglutinador de todo o século XIX. A luva obedece, curiosamente, ao Cânone Grego: a mão espalmada deve ter a dimensão do rosto humano, do queixo à raiz dos cabelos. Por baixo destes símbolos, um prego espera, talvez, por um símbolo futuro…
Não termina aqui a deliciosa provação. Só vai piorar, pois que, estando lado a lado, parede ornada com os símbolos descritos e a ostensiva linha de pórticos que avança da direita, podem agora ser comparadas estas superfícies e tudo quanto contêm em si, em termos de grandeza e de proporcionalidade, e elas são a negação exata uma da outra, não podem COEXISTIR no quadro!…No entanto, estão lá, podemos vê-las (e acreditar na sua existência) como que por magia ou grande ilusão metafísica!…Onde ficou o princípio clássico de que “o Homem é a medida de todas as coisas”?… Em relação à cabeça greco-romana e à luva cirúrgica, os pórticos assemelham-se a buracos de ratos; em relação aos pórticos, luva e cabeça apolínea transformam-se em colossos alienígenas, bizarros, verdadeiras quimeras de uma Natureza-outra inimaginável… a não ser em sonhos… ou nas obras de arte e nas obras literárias nas quais impere feliz a qualidade da Ficção por entre Sonhos, Aspirações à Liberdade e à Dignidade Humanas…
Esta tela foi pintada em 1914, ano do início da I Grande Guerra Mundial.
Giorgio de Chirico nasceu e criou-se na Grécia, filho de pais italianos. Viveu na Alemanha, onde se deixou fascinar pela filosofia e pela literatura romântica, pós-romântica e simbolista. Em Itália, estudou em profundidade as grandes obras e os grandes mestres pintores do Classicismo e do Renascimento. E em França, onde executou esta obra, abraçou generosamente o Modernismo.
Quanto de autobiográfico nos terá confiado neste precioso quadro, “Canção do Amor”?