O período áureo da história do porto de Viana corresponde ao “ciclo do açúcar brasileiro”, desde o reinado de D. Sebastião, durante a ocupação filipina e após a Restauração da Independência, até cerca de 1660. Por 1590, mais de setenta navios ocupam-se do transporte de açúcar. O sucesso advém, principalmente, das facilidades aduaneiras no porto de Viana e da existência de colónias de emigrantes minhotos no Brasil e Norte da Europa. Prosperam armadores de navios de médio porte e comerciantes, vianenses; famílias de negociantes holandeses, flamengos, franceses radicam-se em Viana.
Com efeito, o desenvolvimento dos mesteres em Viana da foz do Lima está relacionado com o incremento do comércio do açúcar brasileiro. Uns tomavam parte ativa no processo: outros aparecem ligados à construção e reparação naval. Na região da Ribeira Lima abundava, a meia encosta, os soutos de carvalhos. As peças mais resistentes, como mastros, gáveas e vergas, assim como relativamente às telas, peças de ferro e artilharia, eram importadas do Norte de Espanha e da Flandres. Nos séculos XVI e XVII, funcionavam em Viana dois estaleiros: junto do mosteiro de São Bento; e, com águas mais fundas para construir embarcações maiores, os estaleiros de Santa Catarina, junto da capela da mesma invocação, sendo um dos estaleiros mais bem apetrechados do norte do País.
É sensível a evolução dos ofícios mecânicos nos séculos XVI e XVII: artesãos especializados em calafetagem, cordame e velame, carpintaria, bombagem. Cresce o número de alfaiates, cordoeiros, sirgueiros, sapateiros, tosadores, tanoeiros (que fabricavam os invólucros de madeira para as embalagens das mercadorias embarcadas). Mesteres ligados ao fabrico e comercialização do vestuário, construção civil e naval, tendo sido assinalável o número de tecedeiras em Viana (exportação de panos de linho para o Brasil).
Sem o gigantismo dos galeões da “Rota do Cabo”, as embarcações da “Carreira do Brasil” eram de médio porte para o transporte do açúcar: tonelagem variável entre as 80 e 150 toneladas, podendo um navio de tipo médio (com três mastros convencionais e velame redondo, à excepção da mesena sobre o mastro da popa, que era triangular) transportar entre 300 e 450 caixas de açúcar.
Nesta conjuntura favorável, surgem agrupamentos de artífices sujeitos a um regimento e pertencentes a um mesmo ofício ou família de ofícios, denominando-se os seus membros de “irmãos”: do Porto e Leça a Vila do Conde e Azurara, Fão, Esposende, Viana, Caminha… Confrarias ou irmandades de natureza civil, como, em Viana, a “Confraria dos Sapateiros e Correeiros” e a “Confraria dos Alfaiates e Sirgueiros”, que tinham um Santo Padroeiro, ou Orago, e uma capela que servia de sede do mesmo.
A Capela de Santo Homem Bom – Patrono dos alfaiates, mercadores, sirgueiros e tosadores – foi edificada no primeiro quartel do século XVII, próxima da quinhentista “Fonte dos Tornos”. Para a sua construção concorreu a “Confraria dos Alfaiates e Sirgueiros”, instituída aos 29-VI-1621 em Viana da Foz do Lima.
Está situada no Largo Vasco da Gama, freguesia de Monserrate. Neste remoto “Largo de Santo Homem Bom”, fazendo esquina com a Rua de Santa Clara, sobressai a antiga Casa dos Abreu Coutinho, brasonada. Na década de 1970 foi adquirido e restaurado este imóvel pela Câmara Municipal, para sede do seu “Centro de Cultura Juvenil” – Escola de Música e Orquestra Ligeira -, posteriormente com a designação de “Escola Maestro José Pedro”.
A frontaria da Capela, de diminuto pé direito, apresenta elementos da reforma setecentista. Na parede exterior da sacristia colocaram-se as insígnias de D. Manuel I – brasão real, esfera armilar e cruz da Ordem de Cristo – erodidas pelo tempo, provenientes da referida “Fonte dos Tornos” à qual se acedia por degraus de pedra, e que foi aterrada quando da construção da primeira doca de flutuação, concluída em 1904 (ainda era lembrada pelas pessoas da geração viva de 1950).
No INTERIOR, lado da Epístola, foram postos a descoberto, na década de 1980, arcos de granito, geminados, com motivos pictóricos. A flanquear o arco-cruzeiro, pinturas sobre tela e tábuas, provavelmente seiscentistas: O Baptismo de Santo Homem Bom; Morte de Santo Homem Bom amparado por dois Anjos, quando assistia à Santa Missa e com a Cruz da sua extrema devoção.
Na capela-mor, retábulo do Maneirismo seiscentista. De madeira entalhada e parcialmente dourada, planta plana, entablamento contínuo, com dentículos, querubim e “grotescos”, e um corpo de três tramos. Os intercolúnios inscrevem-se entre duas colunas maneiristas, uma de cada lado, de capitel coríntio e fuste estriado em diagonal, diferenciado no terço inferior com “brutescos”.
O culto de Nossa Senhora substituiu a invocação de Santo Homem Bom, patrono da Confraria dos Alfaiates. Ao centro do retábulo, numa peanha, Nossa Senhora das Candeias, designada pelas gentes da Ribeira por “Senhora da Candelária” ou “da Candelória”, que estava resguardada por moldura ressaltada e porta de vidro a servir de nicho: elemento acrescentado à estrutura retabular original, que, à semelhança do retábulo da Capela Melo Alvim na Matriz de Viana, atual Sé, também possuiria pinturas hagiográficas nos eixos laterais. Numa peanha do lado da Epístola, imagem policromada do antigo Patrono, Santo Homem Bom, com resplendor e uma tesoura fixada ao pedestal, segurando na mão esquerda o mesmo utensílio de alfaiate e na direita a Cruz da sua devoção. No lado do Evangelho (lugar de honra), colocaram indevidamente, em vez do Patrono, a imagem de São Miguel Arcanjo, com a balança, espada e um curioso chapéu empenachado. Na Sacristia, imagem expressiva do Senhor da Cana Verde.
A “Senhora das Candeias” – Nossa Senhora da Luz – sai processionalmente na noite de 1 de Fevereiro: da Igreja de S. Domingos, percorrendo as artérias principais da “Ribeira”, paróquia e freguesia de Monserrate. O dia 2 é consagrado à Purificação da Virgem: Benção das Velas e Missa Cantada. Festejos com tradicional “leilão de oferendas”.
* * *
Santo Homobono Tucenghi nasceu na cidade de Cremona, na Lombardia (Itália), cerca de 1140 e faleceu em 1197. Pequeno comerciante de tecidos, com oficina herdada de seu pai, que, numa época de crise económica e social, ajudava com artigos e a arte na sua loja os desfavorecidos, com extrema bondade, pondo em causa a subsistência da própria família, até ao dia do “milagre de multiplicação dos pães” na dispensa do lar do casal… Assim ficou Patrono dos Alfaiates e de profissões similares. “Pai dos Pobres”, ainda hoje é o Padroeiro de Cremona – também terra natal do famoso Antonio Giacomo Stradivari (1644-1737) na arte de confecionar os seus violinos – histórica cidade, comuna e província do Norte de Itália, e Patrono, para sempre, dos Alfaiates!...
________________
Bibliografia:
ABREU, Alberto Antunes: O Culto de Nossa Senhora em Viana do Castelo, Instituto Católico, 2006 (Separata do tomo 12 da Revista Memória).
ARAÚJO, José Rosa de: Serão, reed. em 3 vol. de folhetins publicados em rodapé do “Notícias de Viana” desde 1966, Caminha, Camínia, 1982-1989.
FERNANDES, Francisco José Carneiro: “Capelas de Viana”, Cadernos Vianenses, tomo 6, Dezembro 1981; Viana Monumental e Artística, GDCT ENVC, 1.º e 2ª ed. 1990; Talha – Roteiro no Concelho de Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, Janeiro 2019; Heráldica – Roteiro em Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, Julho 2021.
FONSECA, Pedro Quirino da: As Origens da Caravela Portuguesa, Chaves Ferreira-Publicações, S.A. e Estaleiros Navais de Viana do Castelo, S.A., Novembro 2003.
MOREIRA, Manuel António Fernandes: O Porto de Viana do Castelo na Época dos Descobrimentos, Viana do Castelo, 1984; Os Mercadores de Viana e o Comércio do Açúcar Brasileiro no Século XVII, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1990.
Francisco Carneiro