Reformar ou converter a Igreja?

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José Veiga Torres

Há dez anos que o mundo foi surpreendido com a eleição de um Papa tão singular como o Papa Francisco, vindo do fim do mundo, desassombradamente familiar, quebrando distâncias e estilos e dando prioridade a preocupações não habituais nas temáticas eclesiásticas: os pobres, os das periferias, os excluídos, os “de fora”. Algumas palavras-chave sintetizam as suas preocupações prioritárias. Uma delas, talvez a mais forte e decisiva, foi a de “Igreja em saída”. 

A “Igreja em saída”, tem duas dimensões. Uma desfaz uma falsa conceção da Igreja. Por Igreja, geralmente, refere-se o “mundo eclesiástico”, o clero, particularmente, a hierarquia clerical. O Concílio Vaticano II insistia em conceber a Igreja, prioritariamente, como Povo de Deus. O cristianismo não existe em função de si mesmo, nem em função do seu clero, mas em função do mundo. Espantosamente, saiu da boca de um Papa, a constatação do clericalismo, como doença da Igreja. O “mundo eclesiástico” terá de sair de si, do casulo dos seus interesses, do seu poder clerical, para, apenas, servir o Povo de Deus.  Numa segunda dimensão, a expressão “Igreja em saída” responsabiliza todo o Povo de Deus pelos problemas e deficiências da Igreja, na sua missão junto dos problemas reais do mundo. 

O Papa Francisco, ao assumir o bispado de Roma, herdou uma avalanche de problemas que se vinham acumulando e agravando na Igreja e que se refletiam, discretamente, no abandono do culto, na crescente desautorização do clero, na crescente diminuição de vocações clericais, nas polémicas teológicas e suas relações com os conflitos políticos e sociais e, finalmente, com o maior escândalo público a nível mundial, o dos abusos sexuais por parte de clérigos. Mais grave, maior escândalo que os abusos de alguns clérigos, foi o sistémico encobrimento desses abusos. Esse sistémico encobrimento (pelas hierarquias de todos os continentes e até pelas mais altas instâncias hierárquicas), num perverso corporativismo clerical, mostrou quão desviadas as estruturas eclesiásticas estavam (estão) dos critérios radicais do Evangelho. Mostrou quanto a representação se sobrepõe à real evangelização.  

Consciente dos problemas e da sua gravidade, o Papa Francisco tomou a original decisão de fazer entrar as estruturas eclesiásticas em regime sinodal universal, convidando todo o povo a exprimir-se livremente sobre o que esperavam e desejavam que fosse a Igreja. No processo sinodal, ainda em curso, já se vão conhecendo os mais importantes e preocupantes temas em reflexão, por ventura, fraturantes e alarmantes para o poder da hierarquia eclesiástica.

Um desses temas, o que mais perturba a hierarquia, é o do papel das mulheres na Igreja, que tem sido de uma inaceitável e humilhante segregação. O Papa Francisco tem já nomeado algumas eminentes mulheres para altos cargos da Cúria Vaticana, com alguma superioridade funcional sobre os bispos. Mas o problema é mais profundo e tem que ver com aspetos fundamentais (e não apenas funcionais) do cristianismo, no âmbito da sua Teologia. Não se trata da ordenação sacerdotal de mulheres, como algumas mulheres desejam. Isso seria a sua clericalização, ampliando e agravando o clericalismo da Igreja. Trata-se de que o cristianismo originário, apostólico, aboliu a sacralização e sacerdotalização ministerial do judaísmo e do paganismo. O único sacerdote é Jesus e todo o Povo de Deus, configurando-se com Ele, como nos diz a Epístola aos Hebreus e a Segunda Epístola de Pedro e como era prática das comunidades cristãs originárias. Um ministério universal, sem segregação e sem poder. Esta conceção tem sido repudiada pelo clero, mas, ante as exigências da verdade bíblica e de uma evangelização convincente, tal conceção vai impondo-se.

Frei Bento Domingues, na sua crónica no jornal “Público” (26-03-2023) reflete já essa conceção, citando a autoridade teológica do seu confrade Frei José Nunes, O.P. «a história da Igreja dá conta de uma evolução na compreensão e vivência dos ministérios, cuja chave de interpretação é a de um princípio de clericalização ou sacerdotalização dos mesmos, perdendo-se progressivamente a consciência duma evocação ministerial de toda a comunidade, evidente na Igreja das Origens».

Uma verdadeira evangelização do mundo requer das estruturas eclesiásticas não apenas uma reforma funcional, mas uma profunda conversão, uma verdadeira “saída de si”, da representação, do prestígio social e do poder mundano, que não são consentâneos com a verdade e o despojamento de Quem morreu numa Cruz.   

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