Futebol todos os dias, do acordar ao adormecer, cachecol do glorioso à cabeceira, sair à rua com a camisola do Messi ou do CR7, regressar a casa para ver o jogo seguido da caterva de comentadores: eis a estratégia duma provável e ultra secreta OTEM (Organização Transnacional para a Estupidificação das Massas), usando a velha receita de contentar a plebe com “Pão e Circo”. Mas que melhor contributo para o povo se manter manso e estúpido, sem ver a teia oculta que o endromina e parasita?
Em poucas décadas o futebol perdeu a função social intrínseca ao seu ideal moral de desporto belo e atrativo, e foi-se transformando num puro exercício mercantil movendo verbas astronómicas, saturando o mercado de ligas, campeonatos e taças. Com um palavreado prolixo e vácuo, de pretensões académicas, os teóricos e promotores deste reino absurdo, elevaram o futebol à categoria de ciência barata pervertendo o significado e a seriedade das palavras: de “Eusébio, o pantera negra” subiu a “Cruyff, o Einstein dos relvados”; seguir-se-á “Einstein, o Cruyff da Física”; e já temos “Maradona, a mão de Deus” e “Messi, Deus-feito-Homem”. Dessa forma o futebol foi-se tornando um culto laico, com seus sumptuosos templos e influentes pontífices.
Há tempos vi num diário uma foto pungente, emblemática desta realidade: um patriarca deste desalmado culto, em visita à Afurada, comemorando um feito futebolístico. Aí, uma criatura atarracada, rude, sorridente de felicidade e dentes podres, entre a multidão exultante, elevava o neto ao ar apresentando-o ao celebrante da cerimónia como se de uma iniciação batismal se tratasse.
Numa hierarquia similar à da Igreja, os seus oficiantes e ídolos (pobres ídolos em calções e chuteiras: não raro tombam do pedestal ao charco, acabando alguns a anunciar preservativos) com dinheiro a rodos, coincidem e concorrem com o que resta das religiões tradicionais. E assim transformaram o futebol num culto absurdo, avassalador e irracional, constituindo já “a religião de uma parte importante do capitalismo multinacional” (Vasquez Montalbán), com seus respectivos “guardiões da fé”, como Filipe Menezes, um dos pensadores do mundo da bola: “Penso que pertenço à maioria esclarecida do país. Há uma minoria que não gosta de futebol mas penso que o Euro 2004 mostrou a essa minoria que mais vale estar calada, não dizer asneiras e emigrar(…) – in Comércio do Porto, 10.07.2004.
Na expansão desta nova fé, com suas batalhas campais, assassinatos, apedrejamentos entre adeptos, insultos entre dirigentes, cuspidelas à polícia e outros sinais da selvajaria das claques, coincidente com a proliferação de mulheres – jovens e adultas – desbocando obscenidades em todo o lado (assim fazendo jus ao seu entendimento da “sociedade inclusiva”), uma recente moda veio alargar o universo futebolístico: o futebol feminino, com suas entusiásticas espectadoras, comentadoras e praticantes. Uma equivocada “equidade de género” fez tábua rasa da verdade tida até há pouco: “Futebol não é para senhoras”, porque a gracilidade do corpo da mulher não é compatível com a robustez viril deste desporto, nem a beleza serena dum rosto feminino é conciliável com os grotescos uivos e esgares da celebração dos golos.
Perigosos tempos estes, de imparáveis ventos que trazem um relato da epopeia quotidiana ocupada pelos jogos de futebol e banalizando a tragédia dos que, fugindo à fome e à guerra, se afundam no mar; em que os heróis que nos apresentam são craques cobertos de ouro e não os criadores de vacinas que salvam milhões; em que um candidato a 1º ministro ou a Presidente da República tem que tagarelar comentando (sem se rir!) os méritos ou erros tácticos no final de um jogo de futebol.
Mário Lima
O autor segue o anterior acordo ortográfico;