A Aurora do Lima: Herança e responsabilidade

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“Vem despontando ao longe a aurora cor-de-rosa.”

(Guerra Junqueiro, A Morte de D. João)

Muito devemos, os junqueirianos, a A Aurora do Lima. Alguma coisa deve ela também a Guerra Junqueiro (1850-1923). 

Quando, na edição de 23 de junho de 1879, o jornal dava conta do diploma que nomeara Guerra Junqueiro para o cargo de secretário do Governo Civil de Viana do Castelo, não era a primeira vez que escrevia o nome do autor de A Morte de D. João nas suas páginas. Até ao dia em que estamos, de forma mais ou menos próxima e circunstanciada, jornal e poeta caminharam juntos.

Não por acaso, assinala e evoca esta edição os 100 anos sobre a morte de Guerra Junqueiro. Querendo A Aurora do Lima honrar o poeta, a si mesma se honra e enobrece. 

No verão de 2003, ao escrever Viajar com… Guerra Junqueiro — texto posteriormente retomado em Guerra Junqueiro: Percursos e Afinidades, enriquecido com referências de fontes devidamente anotadas, cedência não contemplada na edição anterior — não era a primeira explorava as conexões do poeta com Viana do Castelo. Em As Barbas de Junqueiro, catálogo de exposição homónima, tentara já uma remota abordagem. Não me livro da suspeita de exibicionista, mas apenas por um simulacro de modéstia me permitiria omiti-lo.

Também de erros, equívocos, enganos e mistérios se faz a vida. E o que sobre a vida, obra e pensamento de Guerra Junqueiro vai sendo escrito está bem servido de uns e outros. Pela minha parte, e pensando em As Barbas de Junqueiro, sinto que vou morrer com o peso de ter sido a causa inocente de um erro que nem mesmo em estado de delírio me atreveria a escrever: ter Guerra Junqueiro nascido em Ligares. Mil vezes interrogado o meu manuscrito e suas versões, ali se lia Freixo de Espada à Cinta. Por que fados se imprimiu Ligares (terra de nascimento de seu Pai) é razão obscura para que nunca encontrei explicação.

Confissões apartadas, consintam que diga desta forma o que mais tarde, em extensão e em profundidade apurei: Que riquíssimo, belo e quase indevassado universo de pesquisa oferece A Aurora do Lima!

Não é retórica de circunstância afirmar que, nos limites breves destas palavras, não há espaço para tecer as linhas do passado que ligam Guerra Junqueiro ao jornal. O simples elencar de textos – próprios e alheios – cartas, notícias, transcrições, uma constelação de brevidades (“chegou”, “partiu”, “esteve”, “foi visitado”, “teve a desventura de se ferir”, etc.), extravasaria as margens desta edição comemorativa e exigiria volume generoso.

Conquanto falha de alguns números, A Aurora do Lima, decano dos jornais de Portugal Continental, guarda a força irradiante duma memória vívida. O manso e tenaz avançar pelas suas páginas permite alisar terrenos e descobrir marcos insuspeitos, ver por trás das afirmações, explicar motivos, corrigir fantasias, desvendar propósitos, surpreender até o que fez mover certas engrenagens políticas e/ou religiosas. A isto acrescem outras vantagens mais prosaicas, mas não menos apreciáveis: um eficaz antídoto contra a useira e bocejante repetibilidade de fontes, as cansadas citações e o recurso a informações requentadas em terceira ou quarta mão.

Vejo em Guerra Junqueiro um desses homens decisivos na história de um Povo, um poeta excessivo, honesto, lírico, comprometido, revolucionariamente impulsivo, refratário, desalinhado, alheio a clientelas. Não convocava consensos, nem suportava qualquer outro imperativo que não fosse o da sua consciência. Poetas assim não se confessam, denunciam-se. Deitam para fora o que têm dentro, as suas paixões, os seus afetos, os seus sonhos, os seus ideais, as suas esperanças.

Percorro as largas centenas de ocorrências do nome Guerra Junqueiro nas páginas de A Aurora do Lima e encontro justificado o retrato que atrás esbocei. Será preciso dizer mais?

É sabido que, como os livros, também os jornais levam pessoas dentro. Deste ponto de vista, há sangue novo nas páginas antigas do jornal onde isto se lê. A joeira de mais de cem anos passados permitirá a recuperação de um poeta perdido na aparência de uma irrecuperável distância.

“Aurora”, palavra tão cara à poesia de Junqueiro, é símbolo de luz, de plenitude prometida e de renovação; símbolo de todas as possibilidades e signo de todas as promessas, anuncia e prepara o desabrochar de colheitas. Não deixa, portanto, de ser metafórica esperança.

É imensa a herança que este jornal nos lega, é grande a nossa responsabilidade de herdeiros.

Quase desnecessário é declarar a minha gratidão a Gonçalo Fagundes Meira pelo privilégio de associar o meu nome a este número de A Aurora do Lima. É bom saber em que companhia vamos. Além do mais, não custa perceber que temos em mãos uma das peças mais originais, simbólicas e eloquentes do centenário junqueiriano.

Henrique Manuel Pereira

Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa

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