A Democracia aprende-se

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José Veiga Torres

O ser humano é e deve ser um permanente aprendiz. A sabedoria popular assim o diz: «aprender até morrer». Assim é, porque o ser humano, diferentemente dos outros seres do Universo comum, é indeterminado e inconformado. Realiza-se, determinando-se, através do desenvolvimento das suas relações, primariamente, com os outros humanos, depois com os demais seres. A aprendizagem é o desenvolvimento (casual ou sistemático) dessas relações, tanto para o bem como para o mal.

Quando essas relações se referem à sua ordenação e regulação pública, estamos em presença de regimes políticos. É costume repetir-se um célebre político (Churchill), dizendo que o regime democrático é o melhor dos piores regimes políticos. Os regimes democráticos são uma aprendizagem política moderna de inconformismo social (por vezes revolucionário), em relação aos regimes despóticos e totalitários. Mas não tem sido fácil a democratização das sociedades, porque a DEMOCRACIA exige que todo o povo tenha possibilidade de assumir a dignidade de intervir na regulação das causas públicas. Todas as sociedades anteriores à modernidade foram regidas por sistemas despóticos, de origem teocrática, ou de origem imperial, mais ou menos autocráticos, para quem o povo não tinha outra dignidade que a de servir os seus senhores.  

Na Grécia clássica, excecionalmente, surgiu um regime algo democrático (no século V a.C.), mas reservado aos cidadãos atenienses, uma parte restrita da população. Significou uma evolução notabilíssima da consciência cívica grega, mas não era verdadeira democracia, porque era radicalmente segregadora. Também não prevaleceu às tentações hegemónicas da sociedade.

A moderna aprendizagem democrática também não tem sido fácil, porque os regimes democráticos não se libertam de algumas poderosas facetas despóticas que tentam dominá-los. No nosso tempo, podemos constatar a existência simultânea de diferentes regimes, uns mais ou menos democráticos, outros antidemocráticos, e até alguns regimes claramente totalitários. Distinguem-se pelo nível e pelo caráter ideológico do seu despotismo.  As sociedades modernas desenvolvem tipos de despotismo diferentes das sociedades antigas. Os despotismos ideológicos e os despotismos económicos predominam nas sociedades contemporâneas.  

O despotismo ideológico é o mais ignóbil e desumano , porque atinge o cerne mais profundo do ser humano, a sua liberdade de pensar e de se exprimir, e a liberdade de consciência. Os regimes nazis, fascistas e soviéticos foram as mais trágicas experiências de regimes de despotismo totalitário. Ainda, hoje, um país como  a Coreia do Norte é dominado por um regime totalitário de despotismo ideológico. Já a China e a Rússia, por exemplo, exercem menos um  despotismo ideológico que um despotismo económico, porque pretendem, sobretudo, ser hegemónicos na disputa pela hegemonia geopolítica global, predominantemente económica. O despotismo económico, tendencionalmente totalitário, perverte os regimes democráticos, reservando para o povo o papel de consumidor lucrativo, seduzindo-o com ilusórias inventivas, de prazer, de comunicação, de falsas opções e falsas liberdades, sob a pressão de informações densas e incontroláveis, em que o despotismo do “mercado” se impõe como ideologia camuflada do natural desejo de bem-estar e de bem-viver. Os regimes ditos democráticos nasceram da luta contra a dominação económica e social das autocracias aristocráticas e feudais, mas acabam por ser pervertidos pelas economias neoliberais, tendencionalmente despóticas. 

As democracias modernas nasceram de uma consciência cívica, de que a ordenação e regulação das relações humanas, e, portanto, a dos regimes políticos, deve ser concebida em termos de igualdade, fraternidade e liberdade, sem qualquer distinção segregadora na participação ativa nas causas públicas. Essa consciência cívica emergiu, modernamente, no Iluminismo europeu, em finais do século XVIII, não já inspirada na democracia da Grécia Clássica, mas inspirada nos ideais das primitivas comunidades cristãs, do Médio Oriente, da Grécia e de Roma, a quem o Apóstolo Paulo de Tarso inculcava, como princípio de convivência: «já não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos sois um só em Jesus Cristo» (Ga. 3,28), e que «Deus não faz diferença entre as pessoas» (Rom. 10,12), «fostes chamados para serdes livres, fazei-vos servos uns dos outros» (Ga. 5,13).

Essas comunidades não eram comunidades políticas, mas testemunhavam o ideal da plena realização humana, da plenitude individual construída pela intercomunicação comunitária. Não era uma utopia. Foi uma realidade de aprendizagem social (e transcendente), durante dois séculos, com tão claros efeitos sociais, que a estratégia política do Imperador Constantino (desde 313) deles se aproveitou, para unificar ideologicamente o Império Romano. A genuinidade do processo de aprendizagem democrática das comunidades cristãs, que valorizava cada indivíduo em partilhas comunitárias não hegemónicas, veio depois a deteriorar-se pela tentação hegemónica, na promiscuidade com os poderes políticos. 

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