A homenagem que está por fazer

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Carlos Veiga Anjos

Gil Eanes do 25º aniversário do seu retorno a Viana do Castelo, onde foi transformado em navio-museu, depois de longa agonia na doca comercial da cidade e posterior venda a um sucateiro da margem sul do Tejo, para desmantelamento e venda como sucata.

Nessa cerimónia, muito concorrida, foram feitas várias intervenções sobre o acerto da decisão tomada de sua recuperação e conversão, sendo hoje um verdadeiro ex-libris da cidade. Dei comigo a pensar na sua bondade, mas também na materialidade destas realizações que, se bem demonstradoras do interesse que os portugueses sempre revelaram por estas “artes”, raramente se referem aos seus atores. E nesta linha de pensamento, recordei as muitas pessoas que conheci, pescadores e demais tripulantes dos navios da pesca do bacalhau, representantes dos seus heróis anónimos, esses sim, bem merecedores de uma homenagem, nacional, que lhes está por fazer. E que, embora vindo atrasada no tempo, estará certamente no coração e na mente de todos quantos conheceram esses verdadeiros “lobos do mar”, por relações familiares, de amizade e de portugalidade. Deram um grande contributo à sua pátria, pelo prestígio granjeado como profissionais, mas também pelo peso da sua atividade na então frágil economia do seu país.

Recordo que, ainda adolescente, li e reli o livro intitulado “A Campanha do Argus”, da autoria do australiano Alan Villiers, oficial de marinha que, em 1951, fascinado, deu a conhecer ao mundo a heroica odisseia dos portugueses na pesca do bacalhau. Livro que haveria de ser distinguido, nesse ano, com o Prémio Camões da literatura. Distinto oficial, haveria de ser condecorado pelo Presidente da República de então, General Óscar Carmona, com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada. Em 1953, viria a ser homenageado pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, por ocasião do lançamento à água do navio com o seu nome, destinado à pesca do bacalhau.

O navio Argus era “irmão gémeo” dos navios Santa Maria Manuela e Creoula, estes dois últimos ainda em atividade turística, sendo os primeiros navios em aço construídos em Portugal, para a faina do bacalhau. Até então, os navios portugueses que suportavam esta pesca em mares de extrema severidade, eram construídos em madeira e navegavam à vela, quais continuadores das frágeis caravelas com que os portugueses deram a conhecer “novos mundos ao mundo”.

Não obstante, era grande a afinidade existente entre os tripulantes e os seus navios. Eram o seu “porto de abrigo” e o seu “ganha-pão”. E tudo faziam para os carregarem de bacalhau. Muitas, muitas vezes, pondo em risco a sua própria vida. Com muita fé religiosa, mas também com a sua família no coração, roído de saudades.

Neste ambiente de tremendas dificuldades para todos, os pescadores eram os tripulantes que mais arriscavam a sua vida. Lançados ao mar cerca das seis horas da manhã, em pequenas e muito frágeis embarcações de madeira chamadas “dóris”(nome derivado da mitologia grega, com o significado de divindades aquáticas)  , movimentadas a remos, com uma parca refeição para todo o dia, sem instrumentos de orientação que não fossem a visibilidade ao navio ou a sirene do mesmo. Regressavam ao final da tarde muitas vezes carregados até à borda, com risco da sua própria vida. Içados para o navio, ainda tinham que colaborar na escala do peixe (estripar e salgar) e deposição nos porões dos navios. Seguia-se o jantar em mesa coletiva, a conversa e a dormida em camaratas, dentro de pequenos cacifos, quais cubículos construídos no casco dos navios. Causavam a surpresa do mundo marítimo, pelo seu destemido arrojo e valentia. Traziam à pátria o pão dos mares, como alguém disse.

Na estrutura laboral do navio, o Capitão era o primeiro responsável em todos os aspetos. Normalmente auxiliado por dois “oficiais de ponte” (Imediato e Piloto) e “oficiais de máquinas” (primeiro, segundo e terceiro maquinistas) e respetivos ajudantes. O “contramestre” coordenava a relação direta com os pescadores e restante pessoal de bordo.

A cidade canadiana de Saint John, também conhecida por São João da Terra Nova, era o porto de abrigo onde os navios recolhiam sensivelmente em meados da faina, no mês de Junho, para reparações dos navios, descanso do pessoal e diversão. Eram recebidos com grandes manifestações de carinho e simpatia pelas autoridades locais e pela população em festa. Que atingiu o seu máximo expoente em Maio de 1955, quando da oferta à sua Catedral da imagem de Nossa Senhora de Fátima, envolvendo membros do Governo de ambos os países e autoridades locais, em procissão pelas ruas da cidade.

É a estes bravos homens do mar portugueses, que com a sua coragem trouxeram tanta riqueza para Portugal, que está por fazer uma grande homenagem de recordação e de saudade.

Escrevo como filho e em homenagem ao meu saudoso pai João, que durante 19 anos labutou por essas paragens como 1º Maquinista da Empresa de Pesca de Viana do Castelo. Como amigo de todos quantos conheci e conheço que abraçaram essa vida e como grande admirador dos que não conheço (que estão em larga maioria), mas cuja coragem e abnegação, merecem todo o meu reconhecimento como português e cidadão do mundo. 

Vamos homenagear esta gente. Tentar-se-á organizar uma comissão para pôr esta ideia em marcha e contar-se-á com o apoio das diversas instituições existentes ligadas às memórias da pesca do bacalhau e aos assuntos do mar. 

A Confraria Marítima de Portugal – Liga Naval portuguesa, na pessoa do seu Presidente, senhor Almirante Bossa Dionísio, e o senhor Presidente da Câmara de Viana do Castelo e Presidente da Fundação Gil Eanes, já manifestaram o seu apoio à iniciativa. 

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