A linha do caminho de ferro no Campo d’Agonia

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Joaquim Terroso lá continuava pela capital, com os seus dramas do casamento do neto Constantino por resolver. Esta teimosia dos idosos, por vezes, em nada facilita a resolução dos problemas. A sociedade costuma ser muito tolerante com os mais velhos e cede em tudo, mas nem sempre assim acontece. O nosso Joaquim vende simpatia e estabeleceu connosco uma relação tocante, porque também não o contrariamos. Por experiência própria, sabemos que “idoso contrariado faz birra e fica amuado”. Pior é quando a idade é guindada a estatuto de direito. Aí os consensos mais difíceis são de estabelecer.

Mas também chegamos à conclusão de que estes passeios, mais programados por Joaquim Terroso do que por nós, são do agrado de muitos dos nossos leitores, que quando vêm pagar a sua assinatura anual nos fazem referência ao facto e se mostram convidados para nos acompanhar. Por essa razão é que Zulmiro Mendes, que recentemente nos acompanhou pelo Campo d’Agonia e nos falou do Chalé Quartin, nos tenha surpreendido, com um grupo de parceiros, com convite para novo passeio pelo mesmo local.

É gente que, dada a idade, não vai longe, e só se sente bem a falar próximo do seu habitat. Caminham devagar, falam bem alto, porque a surdez se tornou irreversível, com a particularidade de quererem fazer bom uso da sua sabedoria, já que “conhecimento do passado é sagrado”. Chegados ao campo, quase se atropelam para falar da linha do comboio que ali passou e esteve ativa mais de 60 anos. Zulmiro Mendes é que não contemporizou com atropelos e, assumindo a sua condição de organizador do passeio, não abdicou de dizer tudo o que sabia sobre a bem conhecida linha, próxima da casa em que sempre morou. “Quase a vi nascer e, tal como vós, também a vi morrer”, rematou. Instalou-se o silêncio.

– Se não sabem, ficam a saber que o decreto a dar autorização para a construção desta linha, foi assinado pelo Ministro da Guerra, José Norton de Matos (candidato da oposição unitária às eleições presidenciais de 1949). Estabelecida a paz, Zulmiro Mendes não mais se calou.

– O decreto-lei foi aprovado a 5 de outubro de 1917, precisamente no dia em que se cumpriam sete anos em que a República foi instalada em Portugal. No entanto, a obra só veio a ser inaugurada a 20 de março de 1924. À época, retirar o melhor aproveitamento do porto de mar que tanta expectativa criava como fator de desenvolvimento da região, era um velho sonho dos vianenses.  Por essa razão, se abriu a avenida principal da cidade, com obra iniciada em 1917 e concluída em 1920. Ora, terminada a avenida, naturalmente se pensou, como complemento, na construção desta linha, proporcionadora de acesso fluído nos movimentos entre a estação do caminho-de-ferro e o porto, permitindo a aproximação dos comboios até junto dos navios para cargas e descargas dos principais produtos em movimento, em especial vinhos e madeiras. 

– Alto Zulmiro… – Qual alto Aniceto, disto sei eu e não admito interrupções. Se nem esta gente sabida da nossa Aurora me interrompe, como ousas fazê-lo tu.?“Silêncio, porque vai continuar a explanação”, pensamos.

– Esta linha, a partir de 1944, com a fundação dos ENVC, servia de igual forma esta empresa, particularmente no domínio do transporte de aço destinado à construção dos navios. Permitia, igualmente, o transporte das comitivas governamentais que visitavam os Estaleiros, sobretudo em dias de cerimónia de entrega de navios e, mais tarde, serviu de embarque dos militares para “marcharem” para essa guerra colonial de má memória.

– Para terminar, meus amigos, deixem-me que vos diga que esta linha também facilitou a vida taurina da cidade, já que proporcionava o transporte de gado por comboio até às praças de touros, que aqui estiveram montadas, e que antes, arriscadamente, era feito a pé pelas ruas da cidade. Tenho dito, e acho que disse tudo. Ah, infelizmente, morreu no verão de 1988.

Pacificamos o grupo, de maneira a que ninguém ficasse aborrecido, o que não foi difícil porque todos eram amigos. Porém, novo encontro ficou combinado, com passeio bem por perto. Talvez, dissemos. Se Joaquim Terroso entretanto regressar, lá teremos que engrossar a comitiva. Dificuldade menor, aliás.

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