A memória traiçoeira

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Cruzo a A28, no sentido sul-norte, e sinto um aperto caloroso assim que, no recanto esquerdo da vista, através dos vidros do autocarro, diviso a morfologia da “catedral” de Santa Luzia — considero-me em casa.

O encontro com as raízes que, não somente humildes, são também humanas, ergue à tona da praia do homem, o seu “ser” — ainda que desconheça quem eu sou verdadeiramente, sinto-me eu, nos recantos da minha casa — cerrem-me os olhos e guiar-vos-ei até à esplanada dos poetas (à esplanada do café Girassol), de onde brota a inspiração amadurecida. Ou também, como um cego, recuando um pouco mais no tempo, até à rua Manuel Espregueira, perto daquele banco… as coisas que aquele banco viu outrora, uma madeira tão modesta e gasta arrecadaram tantas memórias por talhar.

Acendemos os primeiros cigarros e bebemos os primeiros copos por entre aquela calçada em madrugadas longas — agora tudo é uma réstia de penumbra escoada à luz do dia, que quem passa olha esquivamente e recorda velhos tempos.

Não há como agarrar o passado, nem como o aproveitar. Há meramente o recordo em pequenos recortes. Não há como pegar de novo no taco de bilhar com o cigarro no canto da boca e um olho cego enquanto um amigo foi ao bar buscar o balde por um euro e meio e o outro a libertar fluídos estomacais para dentro da sanita… nada disso volta, nem volta em histórias contadas, são memórias que ficam ao fundo do baú.

Quando cruzo a A28, seja a entrar ou a sair, uma parte da minha memória lembra, uma parte de mim é — sinto-me eu, ainda que não saiba quem eu sou.

Márcio Luís Lima

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