“A pintura do nosso ardina foi um trabalho que me entusiasmou”

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ala e escreve como pinta. E pinta muito. Profundamente intuitivo e veloz, pode apresentar um quadro em poucas horas. Não sente sofrimento enquanto pinta, nem coça a cabeça como alguns – isso nota-se bem – porque pinta tal como faz qualquer outro tipo de trabalho e sempre encontra soluções fáceis, mesmo para as questões mais problemáticas. Há algum tempo, pintou, graciosamente, um mural no jardim de infância da Misericórdia, na rua Guerra Junqueiro (já agora, Junqueiro, foi um dos escritores que mais escreveu para este jornal), bem bonito, como tudo o que faz. Observamos o esboço e perguntamos-lhe como ia plasmar o projeto naquela imensa parede. Tudo fácil, respondeu-nos. Já cá estão os moldes preparados. Montem o andaime e arranjem-me um ajudante, que isso faz-se num rapidinho. Deu-nos conhecimento de quando iniciava o trabalho. Não o visitámos no primeiro dia, mas fomos até ele pouco depois. Quando lá chegamos, o mural já estava em fase de acabamento. Sorriu e disse. Apanharam-me por pouco. Eu não tenho tempo a perder. É verdade, foi mesmo no rapidinho que tinha falado. Connosco tem uma relação de amizade distinta. Nunca se recusa a ajudar-nos. Desenha e aguarela os nossos bonecos que os leitores apreciam. Já vimos alguns pendurados em paredes. Agora pintou-nos o ardina, de que nos fala nesta conversa que se segue. A contragosto, deixou-se fotografar junto a ele, porque do que ele gosta mesmo é de pintar. E, quanto mais oculto, melhor. 

Costumas dizer que não és artista. Conhecendo nós o teu percurso artístico e o teu valor, porque teimas em fazer esta afirmação?

Há várias razões para que, particularmente, não simpatize com a rotulagem de artista, e a mais distinta é o facto de me sentir muito mais um operário que gosta de fazer coisas, sempre curioso e entusiasmado com novos desafios. Em segundo lugar, penso que a palavra artista está demasiado vulgarizada. Há uma desenfreada procura de um lugar no “camarote” dos artistas. Na minha opinião é um disparate, a única Arte que vale a pena é a arte de saber viver de forma participativa e, se possível, em harmonia com a sociedade a que pertencemos, pondo ao serviço da mesma as nossas capacidades, sempre em pé de igualdade com todos.

Mantem-te na tua humildade, que só te fica bem, mas responde às nossas perguntas. Na arte, o que é mais importante, a criatividade ou a destreza de mãos?

Não me sinto assim tão humilde, o facto de não valorizar muito o meu trabalho pode criar essa imagem. O que aprendi profissionalmente foi com pessoas humildes, mas de grande valor nas artes decorativas. Eram grandes mestres na pintura, no gesso nas madeiras, e não passaram de operários. Com muito orgulho quero ser apenas um deles. O que é mais importante, criatividade ou a destreza de mãos! A criatividade, sem dúvida, mas não descurando o necessário domínio das técnicas para atingir os fins pretendidos. Digamos que as ferramentas e os materiais devem obedecer à nossa vontade, e não o contrário.

O artista nasce ou faz-se?

Penso que já trazemos à nascença alguma predisposição para umas ou outras atividades, mas é com muito trabalho que se atingem objetivos. Pessoalmente, gostaria de ainda ter muito tempo de vida, para a preencher com atividades que me agradam, enquanto outras me passam ao lado, e para as quais não me sinto nada vocacionado.

Recordas-te das exposições que já fizeste?

Já fiz inúmeras exposições, mas por preguiça não lhes dei importância, nem as registei. Foram muitas dezenas já, individuais e coletivas.

Sabendo nós que foste sempre um homem de trabalho intenso, particularmente ligado ao restauro de arte sacra e de casas com nobreza, achas que alguém poderá viver da arte?

Comecei a trabalhar muito jovem, num trabalho duro, carregando baldes de cal e gesso e, logo de seguida, iniciei-me na pintura. Alguns colegas de trabalho diziam que eu era um pouco louco, e tinham razão, por me verem aproveitar alguns minutos da hora de almoço no estudo de pormenores dos trabalhos que me fascinavam, fazendo desenhos inspirados nas salas decoradas com mestria. Principalmente os “fingidos”, que sempre me encantaram. Viver da arte! Para a maioria dos “artistas”, viver bem da Arte, é uma utopia. A maioria procura outra atividade ou então está disposto a grandes sacrifícios. Pessoalmente, trabalhei muito ligado ao restauro e isso dá para viver. As telas, fui-as pintando sempre pelo prazer de pintar, sem nunca depender delas para equilibrar o orçamento familiar.

Quando te propomos um trabalho e não sabemos bem defini-lo, pegas em papel e lápis e esboças com naturalidade o que pensas que desejamos. Foi sempre essa a tua prática?

É mesmo com facilidade que me tento expressar pela imagem, para propor uma ideia ou um pensamento. Garanto que resulta.

O teu último trabalho para a Aurora do Lima, entre tantos, foi o ardina que aqui mostrámos contigo, e que os vianenses olham com curiosidade. Reparamos que o pintaste com prazer. Também vives a nostalgia do velho tempo dos jornais?

A pintura do nosso ardina foi um trabalho que me entusiasmou. O facto de ficar no exterior obrigou-me a utilizar materiais que oferecessem alguma segurança em termos de resistência às intempéries, por isso, acho que vai resultar. O ardina era uma figura que fazia parte da nossa paisagem urbana. Tal como outras profissões, foi desaparecendo. Recordo o ardina de um tempo em que a informação era escassa; de de tal forma “filtrada” que, muitas vezes, mais que informar, deformava as mentes. Mas sempre havia formas subtis de contornar a ordem estabelecida. A Aurora do Lima, por exemplo, é um modelo de resiliência e coragem.

O artista trabalha a té morrer, porque não se dá sem a arte. Vai ser assim contigo?

Sim, trabalhar enquanto tiver condições físicas e cognitivas é o meu propósito. Sem pressão nem ambição, tranquilamente, a viver o tempo que me resta.

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