A pistola de Natal

Picture of Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

O meu neto, filho único, o João, ainda na meninice, ficou aos cuidados dos avós paternos. Faleceram, muito cedo, os avós do lado materno. Os pais emigraram, em plena crise, que foi criada por alguns, mas que outros tiveram de resolver e que foi o povo forçado a aguentar, na procura de melhores oportunidades de trabalho, por esse mundo fora, devido a terem ficado desempregados. Regressam no mês de Agosto, para passarem uma temporada, a fim de matarem saudades e repousarem das fadigas do quotidiano junto dos seus progenitores e do herdeiro, além de uma escapadela na quadra natalícia.

Os actuais mandantes que pertencem ao mesmo clube dos que provocaram a crise, na antevisão do ano eleitoral fartaram-se de apregoar facilidades fiscais no sentido de sensibilizar o regresso dos que foram para o estrangeiro na procura de estabilidade pessoal. Na análise desses conceitos no que cabe a comparações de vida, ajustamentos de residência e outros propósitos basilares do suporte familiar tornou-os reticentes, duvidosos e apreensivos pela possível teia da fiscalidade, aliado, ainda, a uma burocracia enfadonha que os iria envolver. Ficava agravado o panorama para os não reformados, porque ao deixarem o emprego de origem e ficando, agora, à procura de outro no seu país, tudo se tornava numa verdadeira incógnita. A imprensa escrita e falada noticiaram este aparente fracasso, face à escassa percentagem das gentes que optaram pela medida que foi anunciada com um aparato circunstancial de certa sumptuosidade.

Os pais do João, após estudarem toda esta envolvência, também declinaram o que foi publicitado e que parecia, à primeira vista, um horizonte promissor. O menino irá continuar ao cuidado dos avós, até que surja a disposição de serem resolvidas posições subjacentes apropriadas à situação, na sequência da forte carga fiscal das contribuições que a população tem vindo a suportar, na via da obscuridade, face ao labirinto dos impostos indirectos. No seguimento da panorâmica eleitoral parece dar a entender que tudo vai ficar na mesma, atingindo, até, a actual governação o recorde em número de pessoal, aparentemente, sui generis, dado envolver, em paralelo, a questão das instalações e a sua manutenção, o apoio administrativo e político, veículos de transporte e outras derivantes directas ou indirectas, que vai contribuir, todos os meses, para a saída do orçamento de carradas de euros. Mas neste e noutros cenários os Natais sucedem-se…
l l l
No ano passado recordo que, ao aproveitar uns agradáveis dias cariciosos de sol, que rodearam esta época puxada ao sentimento, permitiram quer levasse o meu neto a passear, através das ruas da cidade, a fim de lhe mostrar as montras enfeitadas de brinquedos. Reparei que neste mundo liliputiano, mas de bastantes maravilhas, onde a vida das nossas crianças decorre ao sabor dos seus interesses e da sua personalidade, avultam os brinquedos de guerra, como, por exemplo, aviões, tanques, pistolas, metralhadoras, canhões, espadas, automóveis blindados e outros objectos de cariz beligerante.
O meu pequeno ria. Extasiado, batia palmas. Ao lado dele, outras crianças faziam o mesmo. A certa altura, perguntei-lhe:
– O que queres que o Menino Jesus te traga?
Sem hesitar, respondeu-me, apressadamente, com ares de satisfação:
– Quero uma pistola de cor preta, quero uma bola – fez uma leve pausa – e… um DVD do Ruca.
– Então, queres dar tiros? – observei, a sorrir.
– Quero dar tiros, quero matar…
– Então tu queres matar? – insisti, já com ar de zangado, com a pergunta.
– Quero matar, mas só a brincar – acabou por afirmar, conciliador.
l l l
Na véspera de Natal com a família toda reunida, após a Consoada, chegou o momento crítico de ir para a cama. Não quisemos fazê-lo sem que primeiro fosse levado a ver colocar os sapatos para receberem os presentes a serem postos em cima do fogão, quando a sua voz se ergueu num protesto lamuriante. Queria na chaminé, porque lhe disseram que o Menino Jesus, através do Pai Natal, descia por ela. Arranjou-se um suporte e os sapatos lá ficaram dependurados.
A mãe e a avó, querendo fazer a vontade ao menino, sobretudo num dia destes, que enche por completo o coração, deixaram-lhe, além de outros brinquedos, também uma pistola. Nós, os homens, menos agarrados às convenções e mais às fórmulas e aos princípios, queremos fazer a educação desde o berço. Dizemos que “é de pequenino que se torce o pepino”. Deve ser fácil torcer um pepino, mas uma criança é, por vezes, um caso sério. Há tendências inatas que em certos momentos conseguem arrastar a juventude por um caminho diferente daquele que pretendemos dar. Nesta ordem de ideias, mais coerentes com o nosso espírito de educadores, o pai e o avô, ao lado da pistola, deixamos uma corneta, representante grosseiro e primitivo da música, de que gostamos, e um jogo para aprender o aperfeiçoamento da leitura, factor primacial para saber estar na vida.

O miúdo, durante a noite, dormiu pouco, perguntando, a cada passo, se o Pai Natal já tinha chegado. De manhã, logo que acordou, levado junto da chaminé, agarrou-se, de imediato, à pistola. Os restantes brinquedos aceitou-os por mera condescendência. Andou todo o dia às voltas com a sua pistola de plástico, que mudava de uma mão para a outra, apontando para as mais variadas coisas, ao mesmo tempo que imitava os tiros com a boca.

– Mato a mamã e a avó!
– Mato o papá e o avô!
Foi para o quintal e pôs-se a dar tiros no gato, no cão, nos patos, nos coelhos, nas galinhas… Tiros para os pássaros, tiros no ar, tiros simbólicos, a mostrar uma conduta diferente do quotidiano.
A atitude do João fez-me pensar que vai pelo mundo uma guerra pavorosa. Os homens de boa vontade horrorizados com a sua intensidade e duração, estudam a forma de livrar os povos, definitivamente, ou por longo prazo, destes acessos de destruição e de carnificina, que periodicamente se repetem cada vez com mais barbaridade. Mas como é possível acabar com as guerras se nós nos habituamos, desde meninos, a brincar com elas? Se colocamos as nossas crianças a divertirem-se com objectos guerreiros, em miniatura, cultiva-se, assim, os seus instintos agressivos. Afastemos dos seus olhos e das suas mãos tudo aquilo que não tenha esta finalidade. Os nossos filhos e netos vão crescendo e fazem-se moços grandes. Um dia os progenitores descuidam-se e eles encontram uma espingarda, uma pistola, enfim, uma arma carregada. Põem-se a brincar, sorridentes, satisfeitos, tranquilos com esses objectos, porque em pequeninos também brincavam com coisas desta natureza e não lhes acontecia mal algum. Mas a arma descarrega-se e dá-se a tragédia! É frequente ler ou ouvir a transmissão de notícias desta índole, ou até de situações de clamor e horríveis, que mais parecem ser premeditadas por crianças no percurso da idade escolar. A televisão mostra, todos os dias, a mais variada gama de filmes violentos que excitam jovens e que podem, por outro lado, modificar, fortemente, a sua maneira de proceder. Homens e mulheres feitas como hão-de ter horror à guerra se na infância ela entrou nos seus brinquedos favoritos? As lutas permanecem, através dos tempos. Não são os padecimentos que elas desencadeiam que levarão, porventura, os combatentes a reconciliarem-se, pondo ponto final à tragédia.

Todo este múltiplo estado de conflitos que rebentam, continuamente, nos mais variados cantos do mundo hão-de terminar, possivelmente, quando os seus beligerantes estiverem esgotados, tal e qual como o meu neto, que só largou a sua pistola de plástico quando, no dia de Natal, ao fim da tarde, cansado de brincar com ela, se deixou cair, sonolento, no sofá da sala.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.