A propósito do livro “O ESTALEIRO DA SAUDADE”

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A leitura do livro fez correr na minha memória o filme da história dos Estaleiros.

Ao implantarem-se num meio rural, sem tradição industrial, tiveram que recorrer a gente do campo e artesãos das aldeias limítrofes. Ainda conheci ferreiros, funileiros, carpinteiros e pintores desse tempo.

Esta primeira geração de trabalhadores eram pessoas com habilidade de mãos, mas, em elevada percentagem, de baixa ou nenhuma escolaridade, o que se fez sentir durante muitos anos e deixou marcas. Alguns salientaram-se e chegaram a posições de chefia relevantes, mas o deficit de formação e a mentalidade de quem sabendo pouco pensa que sabe tudo estavam lá, como é patente em depoimentos do livro.

Foram os “mestres de Lisboa” que ensinaram a Arte em Viana. Tive o privilégio de trabalhar com alguns e com eles adquirir os conhecimentos desta indústria que o curso de engenharia mecânica não fornecia.

Tinham, na generalidade, formação média das “criminosamente” extintas Escolas Industriais; e tiveram imenso sucesso na passagem dos seus conhecimentos aos trabalhadores da segunda geração com aquela formação, de que resultaram ótimos profissionais. Sucederam-lhes em lugares de chefia direta e salientaram-se em muitas das principais metalomecânicas do país. Alguns emigraram e “deram cartas” também pelo mundo fora.

É de realçar e enaltecer a vertente de Escola dos ENVC, porventura a mais importante, formando operários especializados de várias profissões. Eram famosos em todo o país e mesmo no estrangeiro, nomeadamente na Alemanha e Holanda, os soldadores de Viana.

Se era indiscutível o saber fazer, o mesmo não se pode dizer da capacidade de Gestão, a todos os níveis. Aquelas escolas não estavam para aí viradas, como também não estavam os cursos de engenharia das Universidades e menos ainda os dos Institutos Industriais.

Também a localização periférica, o desconhecimento de outras realidades, o emprego para a vida numa única empresa, contribuíram para a estagnação dos métodos de gestão e estreiteza de horizontes.

Compensavam-se os deficits de produtividade com salários baixos e grande dedicação de todos, chefias e operários. Conseguia-se, assim, disfarçar a escassez de meios e a falta de racionalização dos métodos e das estruturas.

Quanto à qualidade, nada a dizer, os ENVC sempre foram dos melhores, embora com custos de perfeccionismo que os Armadores, normalmente, não pagavam.

A situação começou a alterar-se com a entrada do grupo CUF. A estratégia passava pela modernização e expansão e pela racionalização de espaços, equipamentos e processos. Contratou novos quadros, criou a Escola de Formação, o Gabinete de Métodos etc., lançando as bases para a introdução das práticas e cultura do Grupo. Foi referência Rodrigues Branco, por muitos ainda lembrado com admiração, sempre focado no aperfeiçoamento dos métodos de trabalho e na criação de uma nova mentalidade aberta à mudança.

Passada essa fase, regrediu-se, a estratégia do presidente do C.G. passou a ser de sobrevivência, com parca visão de futuro, apesar de, paradoxalmente, ter sido a época com vogais dos mais competentes, mas que, com autonomia reduzida, não podiam ir muito além da gestão corrente.

É claro que as crónicas dificuldades financeiras e a instabilidade generalizada da época não ajudaram. A mudança brusca das relações de trabalho criou situações de indefinição e atropelo que complicaram e perturbaram o funcionamento da Empresa.

A única opção estratégica marcante desse tempo foi, com excelentes resultados, a aposta nas reparações em moldes internacionais, pela ação do sempre esquecido e incompreendido João Leite, homem Lisnave. Transformou aquela atividade, que existia incipiente, praticamente limitada aos navios da Empresa de Pesca de Viana, tornando-a competitiva e rentável.

Em meados da década de 80, a entrada de Duarte Silva na presidência da Empresa foi uma lufada de ar fresco. Estabeleceu relações com os melhores estaleiros europeus e proporcionou aos quadros, que acompanhou muitas vezes, o contacto com essas realidades para “benchmarking”. Não tinha, porém, os meios financeiros necessários para os investimentos em equipamentos e reformulação de “lay-outs” que os consultores internacionais recomendavam.

Entretanto, a situação de concorrência alterou-se drasticamente com a entrada no mercado, em grande força, dos estaleiros asiáticos.

Recordo-me de uma reunião que D.S. promoveu em Viana, no âmbito das suas funções como presidente da AWES (Association of West European Shipbuilders), tendo como ponto principal da agenda a criação de uma força de lóbi que sensibilizasse Bruxelas para a necessidade de repor na Europa as ajudas estatais, sob pena do colapso desta indústria, face à concorrência desleal dos estaleiros coreanos, fortemente subsidiados. Nesta altura a China ainda não era problema.

Não houve sucesso, a C.E. desinteressou-se dos estaleiros e a Europa, de largamente dominante durante séculos, passou a representar menos de 10% dos navios produzidos a nível mundial.

D.S. percebeu que o futuro dos Estaleiros, à semelhança do que acontecia noutros países, estaria maioritariamente nas construções militares e passou essa mensagem ao Governo, tendo-a Paulo Portas, mais tarde, em parte, materializado.

Iniciou-se então a roda-viva de administradores de nomeação política e a situação degradou-se cada vez mais.

Em desespero de causa, o Governo chamou Carlos Veiga Anjos, um gestor de reconhecido mérito, com provas dadas, vianense, que aceitou o desafio. Elaborou um plano de reestruturação, doloroso, mas necessário que, embora óbvio, não teve apoios internos, nem externos, suficientes. C.V.A. não conhecia as idiossincrasias da Empresa e foi malsucedido na comunicação, gorando-se assim a última oportunidade de sobrevivência, que era possível, como se veio a demonstrar.

Foi então nomeada a “Administração Liquidatária” que, no início, ainda conseguiu iludir parte dos trabalhadores com promessas vãs. Na fase final adotou a política de terra queimada, em que tudo o que mexia, e o que não mexia, ia para a sucata. Entre outras decisões disparatadas e até ridículas, como o mobiliário de escritório que acabou em lenha, foi retalhada para derreter, uma excelente oficina, bem equipada, vinda dos estaleiros alemães da Flender ao abrigo das contrapartidas dos submarinos. Revelando uma insensibilidade inqualificável, seguiram o mesmo destino, por meia dúzia de patacos, as peças do museu, algumas da Construção nº 1.

Do livro, saliento os tocantes depoimentos da Fabíola e da Elisabete, as referências ao Esteves, que se revelou um talentoso ator e as mensagens de esperança de Carlos Martins e Pedro Duarte da West Sea.

Felicito a autora Ana Peixoto pela iniciativa e o fotógrafo Egídio Santos pelas muito boas fotografias, que ilustram bem o que era o dia-a-dia dos Estaleiros e o sentir de quem lá trabalhava.

Santos Lima

Ex-Diretor Comercial dos ENVC

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