A sorte

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Todos quantos fazem do mar o seu modo de vida sabem bem quão importante é o papel da sorte no decurso das suas atividades, sendo bem possível que aquilo a que chamamos sorte mais não seja do que um conjunto de fatores, na sua quase totalidade imponderáveis e em parte até desconhecidos.

Seja como for, não se me oferecem dúvidas que a sorte (seja lá o que isso for) tem, tal como noutras profissões, um papel muito importante na vida dos homens do mar.

Como julgo ser sabido, em especial pelos mais antigos, a entrada na doca comercial de Viana do Castelo (hoje julgo ser a doca das embarcações de pesca e que, ao tempo, era o único local de atracação dos navios de comércio) estava longe de ser uma “pêra doce”, as dificuldades começavam na passagem da eclusa que, não sei se nas palavras do piloto Agostinho, ou do piloto Josué ou até talvez do mestre Zé Marumba, seria impossível para grande quantidade dos navios que a conseguiam passar se, por ventura, aquando da respetiva construção nos estaleiros, não tivessem economizado na quantidade de tinta na pintura do costado.

Consoante o seu comprimento, tendo em vista a facilidade na saída, assim os navios entravam na doca andando a ré ou, já no seu interior, invertiam o sentido da marcha, manobra esta que tinha, igualmente, certo grau de dificuldade, sendo necessário, quase sempre a ajuda da embarcação dos pilotos da barra para a rotação, a qual, não raramente, obrigava a que o navio utilizasse o bico de proa como se fosse um cabeço de amarração.

No período das festas da cidade era usual (não sei se ainda hoje será assim) a presença de um navio da Marinha de Guerra, às vezes uma corveta, cujo comandante, alertado para as dificuldades redobrava os cuidados nas manobras, por forma a obviar qualquer possível percalço.

Num ano, que já não recordo qual fosse, tudo parecia correr pelo melhor, a passagem na eclusa fora efetuada sem qualquer contratempo, a rotação no interior da doca fora muito bem executada e, quando a bordo da corveta já se preparava a passagem dos cabos de amarração, uma inesperada e súbita refrega de vento “ resolveu “ descer do monte de St.ª Luzia, levando a que o navio, então já quase sem qualquer seguimento, fosse repentinamente afastado do cais e arrastado na direção oposta, vento esse que, tal como tinha aparecido, também assim “resolveu” desaparecer, levando a que o navio tivesse de atracar por BB, no cais Sul da doca.

A grande maioria dos assistentes – naquele tempo a chegada e partida de navios era um acontecimento – não poupou elogios à perícia do comandante da corveta que tão bem soubera reagir a uma tal situação inesperada e conseguira uma atracação suave e sem quaisquer problemas. Posto ao corrente da apreciação feita pelos espectadores, o oficial em causa, que veio mais tarde a desempenhar os mais altos cargos na Marinha, limitou -se a comentar o sucedido da seguinte forma:

“A atracação não foi mais do que um ato de sorte, já que a minha intervenção se limitou unicamente a indicar que a amarração do navio em vez de ser por EB, como previsto, passaria a ser por BB”.

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