A velha casa onde nascemos

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Quem não se recorda, com saudade, da velha casa onde nasceu e se criou? Casa velhinha, em que cada canto e recanto se revive amorosos retalhos dos tempos que já não são.

Nasci numa velhíssima casa de alforge, de três alargados pisos, com mais de duzentos anos! Havia, no rés-do-chão, alçapão que dava acesso a lôbrega e sinistra cave, infestada de aracnídeos, que era o terror da criançada, mormente do benjamim. Recordo – como recordo – Deus meu! – da ampla e soturna sala de jantar, de paredes forradas a papel encarnado, recobertas de baixos-relevos, aguarelas, pratos de faiança e quadros de gravuras antigas. Em duas sóbrias colunas de nobre madeira, repousavam delicadas estatuetas em gesso patinado. Nas portas, cobertas a esmalte branco, pendiam das sanefas pesados reposteiros. Tomávamos nela as refeições, mas apenas em dia festivo ou quando havia visitas de cerimónia; ordinariamente tínhamos outra salinha, mais acolhedora, para o trivial.

Lembro-me – como me lembro – o espaçoso armário de portadas verdes, embutido, quase dissimulado, no vão da escada. Nas sólidas prateleiras, dormiam inúteis velharias, entre elas: balança de dois pratos, maciços globos coloridos de vidro, palmatória de latão, pautas de música da avó Sofia, garrafas de vinho do Porto, e antigos jornais, relatando notáveis acontecimentos do passado.

Nesse antiquíssimo casarão, decorreu a minha nem sempre feliz adolescência, cadenciada pelo embalador e dormente tiquetaque do antigo relógio de pêndulo, que pertencera a minha bisavó Júlia. Nessas rijas paredes de estuque e granito, decorreram aventuras e desventuras, e senti, com mágoa, paulatinamente, escorrer como areia fina entre dedos, sonhos idealizados, que não pude ou não soube concretizar. Em “Portugal Pequenino”, Raul Brandão invoca o encanto das vetustas casas que passavam de geração a geração: “Que linda casa quando vem dos pais que a herdaram dos avós! Cada prego foi pregado para a eternidade. Mais tarde até na velhice e ainda que corras mundo, todos os teus sonhos se passam sempre entre aquelas paredes, e empurras as portas perras dando-lhes o jeito que lhes davas em pequeno para as abrires…”

Camartelos, pás e picaretas, desventraram, sem dó, a velhíssima casa da minha infância. Ficou-lhe o imponente esqueleto, mirando altivamente as águas açodadas do Douro, e o casaria acastelado da cidade da Virgem. É a triste sorte, neste tempo prosaico, das vetustas residências do século XIX.

O encanto, que recorda Raul Brandão, já não pode sentir a geração do século XXI, porque foram desfiguradas, demudadas em esquerdo – direito. Jamais terão os jovens o prazer, o fascínio, de viverem nessas velhas casas de outrora; algumas tinham jardinzinhos aconchegantes, caramanchões coroados pelos robustos braços de contorcida glicínia, que desabrochava ao raiar da primavera, toucadas de formosos e olorosos cachos arroxeados,

Nessas vetustas casas, que eram dos avós ecoavam pelos taciturnos corredores, antigas vozes dos entes queridos, que já partiram. Em cada quarto, em cada saleta, sentia-se reviver, a cada passo, os ancestrais falecidos – bisavós, avós e pais. Eram casas que tinham alma, que recordavam quem éramos e de onde viemos.

Humberto Pinho da Silva 

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